quinta-feira, 9 de julho de 2009

2

Tanto "Je t’aime... moi non plus” quanto Serge Gainsbourg são conhecidos há muito tempo. A canção que o compositor francês cantou em 1969 com Jane Birkin causou um escândalo famoso, por ser explicitamente erótica. À época da estreia do filme de mesmo título, dirigido por Gainsbourg, a polêmica aumentou. Paixão Selvagem, como é conhecido no Brasil, é absolutamente condizente com a personalidade de seu diretor. A história do caminhoneiro gay Krassky (Joe Dallesandro) que se envolve com a garçonete andrógina Johnny (papel de Birkin) é sensual, ousada e despudorada.

O erotismo era parte da vida e da obra do artista, e é sempre contemplado e celebrado, exaltado e naturalizado, seja na voz macia e murmurante ouvida na canção, seja na nudez constante da atriz e de seu parceiro em cena. O conteúdo do filme é anunciado na simples menção do nome do diretor. Um filme dirigido por um homem famoso por sua sexualidade é totalmente auto-explicativo. Logo, quando o espectador dá de cara com nus frontais, masculinos e femininos, cenas de sexo explícito, brigas violentas e assassinatos passionais, está simplesmente vendo o que pagou para ver.

É como o velho flatulento que cuida do bar de Johnny. Não que ele não seja uma caricatura do grotesco, mas, em certo momento, ele lembra a garota que ela sabia de seus problemas com gases. O aviso é dado como lembrete à personagem, e, mesmo sendo novidade para o espectador, este sabe que é algo já estipulado. Acontece o mesmo com as cenas “polêmicas”: nos créditos, no mais tardar, todos na sala de cinema sabem o que verão. Não é uma posição defensiva, e sim um sutil ataque à hipocrisia de quem possa criticar o filme por motivos moralistas.

Isso dito, e sendo a mais interessante discussão presente no filme, há questões mais superficiais. A beleza estética, particularmente, pois não tem grande ressonância. É apenas uma boa seleção de enquadramentos e movimentos de câmera relativamente belos, pois raramente exprimem algo além de apuro visual vazio. As exceções são algumas cenas de sexo, sensuais e íntimas, que ganham ainda mais potência com os planos de Gainsbourg, e um par de seqüências em que o lixo é visto como algo sublime. Além desses seletos momentos, a estética da imundice se confunde com a estética da limpeza sem constância, e, mesmo quando se equilibram, não dizem nada muito profundo.
7,0

Kristin Scott Thomas tem a chance de realizar um vasto exercício de atuação no filme de Phillip Claudel, Há quanto tempo que te amo. A obra escrita e dirigida por Claudel mostra o retorno de Juliette (Thomas) depois de 15 anos de prisão. Ela vai morar com a irmã, Léa (Elsa Zylberstein), mas a adaptação é difícil, especialmente levando em conta o que ela fez para ser encarcerada. Uma boa escolha feita logo de cara foi evitar o mistério sobre a natureza do crime. Ele é revelado relativamente cedo, e de forma direta, seca, numa entrevista de emprego. Aí reside o grande trunfo do roteiro: o enfoque é dado às reações de todos em relação a Juliette.

Nesse sentido, a construção é fenomenal. Personagens inteiros são criados com uma grande variedade de funções, mas todos dizem algo sobre a protagonista, antes de tudo. Um excelente exemplo é Fauré (Fréderic Pierrot), que é trabalhado com bastante sutileza. Em determinado momento, ele conta para Juliette seus anseios, desejos e sentimentos. Depois de ser ouvido, ele pergunta como a interlocutora está, e a cena acaba. É um dos momentos mais tocantes do filme, pois é quando fica explícito que sua importância é não se preocupar demais com Juliette.

O único que tem uma reação similar é o pai de Luc, marido de Léa. Ele vive num cômodo, e, por ter perdido a fala depois de um AVC, só lê e se comunica através de bilhetes. É o primeiro personagem com quem a protagonista tenta contato, por um motivo simples: ele não falará coisas erradas. Quando fala com o idoso, ela sempre recebe um sorriso radiante de volta, e os motivos para tal atitude podem ser vários, mas não importam. O que importa é que ele é uma companhia inofensiva, que respeita completamente o espaço de Juliette.

Outra cena inteligente, que na verdade introduz ao espectador o conceito da obra, ocorre no carro, quando Léa está levando a irmã mais velha para casa pela primeira vez. A caçula conta as novidades da vida, mas com uma apreensão que fica óbvia em olhares, voz e postura tensos. Thomas não facilita, é fria a tudo, pois está no começo de sua reabilitação ao mundo exterior (e construção dramatúrgica) e se encontra inacessível em todos os sentidos. Quando Léa começa a se desculpar pela distância, num raro caso de diálogo expositivo com estofo, a situação é mais complexa. O enfoque ainda é no efeito que Juliette causa nos outros, mas, nesse caso, se trata do efeito causado nela antes de mais nada. Um ato, uma ausência ou uma palavra causam uma mudança na protagonista, e é aí, talvez, que é apresentada a grande força motriz do filme.

Como há de ser, a ideia se perde em certos momentos. Se a cena citada acima apresenta um discurso elaborado e o personagem de Fauré é explorado sutilmente, vários outros excertos do roteiro pecam em ambos os quesitos. Num contexto mais geral, Luc e sua filha com Léa, a pequena Lys, têm um valor pobre. As preocupações paternas do primeiro e a curiosidade infantil da segunda soam artificiais. Se o diretor provou que sabe usar as entrelinhas, fica difícil aceitar que as coisas sejam expostas de forma tão esquemática e mastigadas como o são, via de regra, com esses dois personagens. Há exceções, como a cena do zoológico, que não fica apenas na exposição dos dilemas morais da convivência com uma ex-criminosa.

O intelectual no jantar, apesar de também jogar questionamentos de forma pouco orgânica, dá outra prova de habilidade de Claudel. A resposta de Juliette, seca e breve, é a mesma que ela já usou antes, e o resultado não podia ser mais diferente. Através de um cuidadoso planejamento narrativo, cada personagem entende e julga a informação de um modo particular. Na mesma cena, Michel descobre a veracidade da revelação, mas o que ela representa tem um valor distinto do que tem para Luc, Léa ou a própria Juliette. A quantidade de personagens secundários e terciários enriquece profundamente a trama, e evidencia a dedicação e inteligência do texto.

Toda essa construção, no entanto, tem como foco a protagonista, e Thomas é a chave para o sucesso absoluto do arco dramático de Juliette. A atriz dá atenção a tudo, desde os detalhes minuciosos de seu rosto até elementos mais gritantes, como a hesitação física ao contato humano. O mais notável, porém, é como ela consegue confeccionar uma pose sem se projetar. Ela mostra com o corpo, com o olhar, com um pathos danoso, que Juliette conhece seu poder de afetar os outros. Não é uma postura de imposição, e a impossibilidade de se livrar dessa aura nefasta mostra quanta melancolia a inglesa imprime à sua performance.

Isso leva ao desfecho, que tem uma qualidade de esperança que pode soar puramente esquemática – o que não deixa de ser, já que a revelação parte de um incidente patético, e não do interior de um dos personagens. O que torna esse um caso raro em que a convenção ganha força é o eco com a proposta narrativa inicial. Quando Léa força Juliette a contar tudo (olhando-a firmemente nos olhos, num dos grandes momentos de Zylberstein), ela está mostrando que sua reação, pela primeira vez, é de compreensão e apoio emocional. O resultado é, de fato, horrivelmente piegas e expositivo, mas conclui de forma interessante o retrato de uma mulher formada pelo que causa às pessoas a seu redor. É uma pena que essa história tenha sido confeccionada com uma apoteose impossível de ser somente boa.
8,0

X

Há uma relativa dose de complexidade na idéia de Obrigado por Fumar. Em sua proposta básica, o filme quer mostrar como funcionam os bastidores das empresas de cigarros, e para isso adota um tom satírico de humor negro. Essa escolha não ridiculariza os personagens que defendem a propaganda do produto, colocando-os, pelo contrário, como os piadistas que fazem graça das vítimas Ao separar os que caçoam dos “fracos e oprimidos” e os próprios, a comédia politicamente incorreta se estabelece, e serve para causar uma sensação de desconforto no espectador que ri. Afinal, rir de uma criança com câncer o leva a pensar que não está certo achar graça em tal piada – logo, o moralismo se forma quase que organicamente, estabelecendo os caçoadores como pessoas más ou deturpadas.

E essa visão é reforçada por causa de uma coerentíssima subtração do filme: embora vários personagens fumem, em momento algum eles são mostrados acendendo ou bafejando um cigarro. A mensagem é clara: é uma análise do marketing do fumo, mas não inclui uma cena sequer de fumo, o que estabelece o posicionamento dos realizadores. E isso está bem longe de ser um problema. Mesmo definindo bem sua moral, o roteiro instiga o trabalho mental através de questionamentos interessantíssimos, e desenvolve seu tema através de perguntas, fatos e respostas que tornam a discussão muito mais rica. O formato crítico não se impõe ao espectador de forma a fazer uma lavagem cerebral, uma atitude sóbria que requer esforço por parte do cineasta.

No entanto, há uma clara casca indie na direção de Jason Reitman (até agora, um indie incurável, para o bem e para o mal), seja através das intervenções visuais, cênicas e narrativas, seja através das micro-digressões que apresentam certos personagens. Enquanto cativa pelo formato “menos convencional”, Reitman acaba tornando seu filme uma peça de propaganda, um anúncio da interessante estética do filme independente – que está altamente em voga há pelo menos dois anos, ou seja, foi uma estratégia de sucesso. E embora soe desonesta, a tática é um eco perfeito da proposta: é uma auto-indulgente e divertida peça de merchandising anti-fumo. Não se pode acusar Reitman de falta de ironia, absolutamente. A anti-propaganda não é novidade, nem mesmo no cinema, mas o ataque é muito bem azeitado e se justifica com esse posicionamento deliciosamente irônico. E o melhor: pode-se sair do filme e ainda assim apoiar o direito à divulgação da Marlboro, da Parliament e da Free. Enquanto ser um lobista requer flexibilidade moral, Obrigado por Fumar flexibilidade cinematográfica.
8,0


O que faz Häxan sobreviver ao tempo é mais que suas questões e seu tema milenar. É a sensação anacrônica que o faz uma obra de constante fascínio. Cada vez que é visto, não importando quantos anos atrás foi seu lançamento, tem-se o claro retrato de uma época, de uma mentalidade e de uma postura perante o passado. E o fato de o filme exatamente fazer um retrato de um passado mais posterior ainda causa uma ilusão semelhante à de olhar o reflexo de um espelho, com centenas de imagens se apequenando na distância.

Embora inegável como peça histórica, o filme preserva seus erros, como um didatismo muito exacerbado tanto em algumas imagens quanto em alguns dos letreiros. Não obstante, é incrível o poder que algumas das imagens ainda causam (há cenas verdadeiramente macabras em meio às marcantes aparições demoníacas) e a qualidade do texto mostrado na tela (não raro, o filme traz um senso de humor fino), e a seleção de composições, algumas clássicas peças de música erudita, tornam o efeito mais poderoso ainda.

Mas o mais magnífico mesmo é o que o filme faz pensar, não o que foi planejado por Benjamin Christensen, mas os pensamentos formados graças à defasagem de tempo. Encontrei-me pensando em como o filme se assemelha a um documentário informativo, especialmente do canal Discovery Channel, no modo como faz reconstituições de cenas do passado, como coloca questões e como as responde através de estudos recentes. E pensar que o que já foi Cinema (de alta qualidade) hoje em dia é visto na forma de programas de televisão é uma ponderação riquíssima sobre a história do Audiovisual como um todo.
9,0

Festim Diabólico começa sem rodeios, mostrando o assassinato-mote da trama. A partir daí, Hitchcock cria, com o auxílio de uma teatralidade ungida de grande força narrativa, um exercício de tensão de ranger os dentes. Sua direção cênica é primorosa, usando a inovadora forma de filmagem para realçar momentos de grande suspense, resolvendo de formas brilhantes a incapacidade da câmera de ter a abrangência de um palco inteiro – ele mantém os diálogos no compasso adotado para todas as cenas (ou seja, em frenética ebulição) e filma movimentos e ações absurdamente tensos, como a inesquecível cena da Srta. Wilson tirando a “mesa”. Sua câmera, no entanto, vai além dessas perspicácias, conseguindo uma fluidez impecável pelo espaço e utilizando de forma dinâmica os longos planos. E enquanto temos um exercício cênico de cair o queixo, o texto de Arthur Laurents se encarrega de brincar com o espectador, seja através do crescendo de suspense, do humor negro afiadíssimo ou de toques macabros dignos de uma encarnação de E. A. Poe.

O elenco faz as vezes de “rebanho” com intensidade, com Stewart deslizando sombriamente pelo cenário, Dall acertando nas variadas emoções, apenas parcialmente veladas, do narcisista assassino (do sutil ao espalhafatoso, do confiante ao temeroso, do cômico ao austero) e uma performance contagiantemente irritadiça de Granger. Merece menção honrosa o austeríssimo Hardwicke, cuja severa ética serve como prelúdio para a conclusão. Não que o longo monólogo de Stewart seja exatamente o que se espera de um filme tão moralmente despojado quanto seus protagonista, mas isso não chega a perturbar muito a harmonia do filme.

Mas ainda mais fascinante que assistir à obra de Hitchcock é ver em seguida Muito Além de Festim Diabólico, um documentário que esmiúça uma conturbada produção. E o mais interessante não são as câmeras coloridas gigantescas ou o esforço tremendo para coreografar o cenário durante os longos takes: o processo de adaptação e roteirização de Festim Diabólico só faz o filme ser mais apreciado. E não é por puxa-saquismo: o roteirista deixa claro que achou várias escolhas do diretor erradas, como revelar que, sim, havia um corpo no baú, em vez de deixar a dúvida. Vendo por esse lado, é empolgante reparar que Hitchcock troca o mistério e a curiosidade do espectador por uma tensão excruciante, advinda exatamente da certeza de que o corpo está lá. E isso é coerente com os cortes que têm de ser feitos às costas dos atores, demonstrando que o diretor escolheu uma abertura maior em relação a suas intenções para que os resultados fossem honestamente apreciados – a proposta só se revela mais redonda ao ver que Laurents critica tais cortes. E não pára por aí, já que o quase invisível homossexualismo, que é evocado por milissegundos em uma ou outra cena, é confirmado no documentário como tema importante do texto e como um tabu monumental durante a filmagem. O dvd da Coleção Hitchcock garante essas duas experiências, que, em seu conjunto, tornam o Cinema mais interessante ainda.
9,5

Embora seja um assunto constantemente abordado no cinema e totalmente universal, a família raramente é usada para construir um filme tão potente quanto Segredos e Mentiras. Na bela obra de Leigh, preparada do modo brilhante e humano que é a marca registrada do inglês, a universalidade do tema ganha uma dimensão tão brilhante que é difícil não entrar em reflexão bastante pessoal sobre como se dá a relação do indivíduo com os familiares. Cena após cena de trabalho cênico honesto e genial, a narrativa consegue tocar em várias questões familiares, algumas bastante difíceis, tanto no quesito narrativo quanto no da sensibilidade. A relação entre amizade e parentesco é explorado com propriedade, sem medo de inferir que essas duas coisas, assim como o contato, a intimidade e mesmo o amor são elementos que não têm nenhuma obrigação de constarem na definição de parente, ao que a dor é vista como um fator unificador e intrínseco à família. A trilha acompanha essa visão abrangente, usando de formais melodias tristes como símbolo das concepções prévias sobre o assunto, ao que os instrumentos usados firmam uma postura muito menos convencional. Embora opte por uma conclusão mais esperançosa, Leigh deixa seus questionamentos expostos, e os lança de forma crua e realista – e o melhor, de forma sincera.

Sem essa sinceridade, o filme não seria nada do que é, e essa palavra-chave se estende a todos os membros do inspirado elenco. Em seu primeiro trabalho, Jean-Baptiste se entrega de forma natural ao mundo alienígena que é a instituição familiar (dada sua aparente distância com a família antiga), dando a tiques e expressões faciais um sentido de abertura total, em que se pode ver, com intimidade, seu personagem gradualmente se acostumando com a noção mais nua e crua da vida entre parentes. Embora tenha poucos momentos de expressividade, já que Roxanne é distante e fechada, Rushbrook consegue em poucas cenas transbordar emoções intensas, como a cena em que ela percebe a união da família. Mas os destaques são, mesmo, Blethyn, com sotaque e voz perfeitos, vivendo o passado com incalculável sensibilidade e explorando o presente com esperança e temor, e Spall, que não tem como experiência apenas o passado e os brutais conflitos entre entes amados, mas também dezenas de contatos passageiros com as pessoas que fotografa, onde claramente conhece facetas alheias e acumula melancólica sabedoria sobre o demônio familiar. É essa melancolia que Spall captura em seu olhar e postura, retendo tudo para si até as incríveis cenas ao fim da projeção. Quem nunca sentiu algo demonstrado ou discutido por esse filme que jogue a primeira pedra.
9,0

Courtney Hunt faz de Rio Congelado um contraponto climático (mas, em partes, paralelo) ao desértico mundo de Onde os fracos não tem vez, ao menos na fotografia, que encontra nuances nas paisagens inóspitas. Mas se, por um lado, a obra desorientadora dos Coen ressalta o pessimismo através de personagens alegóricos, Hunt busca um tom muito mais esperançoso em que a humanidade é o pilar principal. Longe de ser um ode, a diretora envereda por personagens difíceis de julgar, tendo sempre em vista aquela sensibilidade que predomina no mundo real, aquela difícil de reconhecer ou aceitar. Não parece que Ray faz o que faz por amor, já que ela é fria e seca, bruta com pessoas, e não raro surpreende o espectador que espera uma mulher mais "idealizada" e não está preparado para o tipo de humano caleijado que protagoniza o filme - é na falta de sensibilidade que vemos quando esta existe. Assim o filme é uma via de duas mãos, mostrando sutilmente, em explosões de violência raras e sóbrias, emoções disfarçadas por um tiro repentino ou por uma dura carranca.

Somos obrigados a ver as facetas de todos os personagens, um trunfo numa grande obra que confia totalmente nos pilares humanos que roteirista, diretora e atores criam com tanto esmero. Porque não basta que McDermott surja surpreendente como um adolescente pronto, em teoria, para virar homem se sua família precisar. Acompanhamos Leo numa das performances mais arrebatadoras do ano (2008 ou 2009, até onde posso dizer), uma verdadeira vitrine de humanidade em que o rosto não comunica só pelo que vemos e a voz não comunica só pelo que ouvimos. O poder das nuances salta da tela em momentos de simplicidade sincera (sua voz se torna eufórica por um segundo ao achar 5 dólares), de rispidez siginificativa ("Estou falando sério, querido") e até mesmo de sentimentalismo despistado ("Ele morreu e você o deu vida"), tudo graças a uma intérprete que sabe exatamente como entoar cada palavra.

E mesmo que Misty Upham só esteja aceitável num retrato um tanto raso da melancólica (e um tanto rasa) história de Lila, ainda resta a força da mensagem nada explícita de que a humanidade não é exatamente redentora nem faz tudo dar certo: o realismo do altruísmo familiar, e do sentimentalismo meramente cabível no mundo real, ressalta que não há julgamentos fáceis nas arbitrariedades da vida e que boas intenções podem se acabar em bons e maus resultados ao mesmo tempo. Aquelas pequenas figuras se movimentando na monumental paisagem de inverno fazem diferença, podendo fazer coisas certas mesmo que o gelo já tenha se infiltrado por seus calos e esfriado seus espíritos. É no desespero que se encontra a união. E um filme que se envereda por caminhos tão tortuosos para chegar numa máxima já batida pode ser criticado, mas não por usar de saídas fáceis.
8,5


Tido por muitos como o primeiro filme ambientalista da história, Corrida Silenciosa provavelmente soou, na época, tão esquisito para o mundo quanto Lowell soa para seus colegas de espaçonave. Muito antes de Shyamalan, Emmerich, Gore e muitos mais entrarem na onda, precisamente 30 anos antes, o diretor Douglas Trumbull já fazia um filme poderoso (e muito melhor) sobre o tema - situando sua narrativa num futuro em que essa preocupação era perfeitamente cabível e conseguindo, sem uma única tomada da Terra, evocar horror só pela possibilidade de um mundo destituído de verde. As naves, belíssimas, que flutuam pelo espaço carregando gigantescos domos-estufa funcionam em favor do meio-ambiente, e essa visão quase romântica das possibilidades dos avanços tencnológicos dita um filme que não poderia ter menos a ver com a obra que tornou seu diretor famoso, 2001.

O então supervisor de efeitos visuais fotográficos seguiu no Cinema para dirigir seu primeiro longa, e, num acordo da Universal que deu à luz outros "indies" (entre eles, Loucuras de Verão), conseguiu dirigir com liberdade. Isso não significava apenas ter os dedos do estúdio distantes, mas também aprender, pois ele diz que foi Corrida Silenciosa seu teste como diretor. E o resultado é fascinante. Com câmeras precisas, muitas vezes dinâmicas, e singelos truques estéticos, Trumbull dá personalidade ao filme, além de conseguir uma simpatia necessária para o roteiro. Efeitos e direção de arte fantásticos ajudam a criar um ambiente relativamente leve, especialmente quando os pequenos dróides (um impressionante efeito por si só) estão na tela. São os robôs que mostram, em várias cenas divertidas e afáveis, como o homem, a natureza e a tecnologia podem coexistir - e é esperto do roteiro perceber como isso é utópico. À vontade, Dern ainda funciona bem, mesmo com um diretor preocupadíssimo em mostrar bastante o rosto de seu ator - e mesmo que exagere às vezes, entrega uma atuação ótima. Também a trilha tem seus momentos ruins, mas nada sério.
8,5

Viver
Talvez seja um tanto desonesto focar nos contextos políticos da obra de Kurosawa. Desonesto com Watanabe, no caso, pois isso faria o espectador agir da mesma forma que os bêbados no funeral, saudando uma mensagem que podia nem estar presente nos ideais do protagonista. Não se pode negar (e o diretor nunca nega) que há profundos significados políticos, culturais e sociais em sua obra: a ineficiência da buracracia (explorada no começo por uma montagem hilária), os prós e contras da modernidade e da tradição, a recusa desta em detrimento da mentalidade ocidentalizada, o distanciamento entre familiares causado pelas mudanças sociais, o afã por descobrir ideologias e o conformismo.

Entretanto, Watanabe, em toda a sua humanidade, é apolítico. Tampouco é possível dizer que ele desenvolveu uma ideologia, uma vez que a grande virada em sua vida foi tão chocante e natural quanto a descoberta de seu câncer. Foi a morte que lhe trouxe vida, e não se pode falar de ideologia sem idealizar algo, e ainda menos quando uma atitude vem da emoção pura. E mais, como aderir a um conjunto de idéias se ele se originou de uma situação-limite como a sentença de morte do protagonista? É o extremismo de sua situação que o fez pensar e sentir a vida, e quem o usar como inspiração dificilmente poderá usufruir de sua convicção. Aqui, vários filmes de superação vêm à mente, e poucos se assemelham a Viver simplesmente por adotarem um positivismo exacerbado.

O tom do filme de Kurosawa é perfeito, indo direto no âmago da melancolia trágica sem passar batido pelos momentos de sincera felicidade. O retrato dos momentos finais de Watanabe é coerente graças à determinação dupla: de não se entregar totalmente à tragédia nem à felicidade idealizada. E sobram cenas potentes para cada nuance do momento: a canção "A vida é curta", a revelação dos apelidos, as andanças embriagadas e a discussão à mesa do chá, só para citar algumas. Ajuda a presença de um ator que explora muito bem o personagem.

Shimura consegue se deformar em diferentes estados de espírito, mantendo uma linha de melancolia sempre visível em sua brava atuação. Também notável é como sua subserviência se mantém em momentos decisivos, utilizando com sutileza a idéia do poder da humildade e do peso da convenção. Com o protagonista alheio a quase tudo, Kurosawa cria cenas brilhantes, como a do aniversário e a já icônica cena do balanço. É esse destacamento, essa entrega ao âmago de sua alma que torna Watanabe um personagem tão memorável - e é pela presença do mal dentro de si (o câncer) que essa jornada se torna tão bela quanto pesarosa.

O domínio narrativo também impressiona: o diretor usa uma adequada narração burocrática, instigantes fraturas temporais e dá força ao epílogo por dispersá-lo em memórias e impressões - muitas equivocadas - que só ressaltam a presença pós-vida do protagonista. A mensagem que os personagens do funeral deixam é aterradora: talvez viver não seja algo passível de se fazer em "vida". Só com a proximidade da morte seríamos capazes de saber o valor que a vida tem. E a honestidade que Viver alcança ao não forçar mensagens acolhedoras (sacrificando o velho carpe diem em prol do personagem) só reforça a condição de obra-prima inimitável.
10,0

Vi, para repousar, um clássico mindfuck: Os Doze Macacos. Não dá pra relaxar muito, já que a trama não para por um minuto e a direção soberba de Terry Gilliam não facilita em nada, nem no tom cambiante nem no visual. . Além disso, há Willis em um de seus melhores papéis (brucutu, ok, mas brucutu amalucado? Excelente escalação!), Pitt bem como louco varrido (num papel que escora alguns dos temas do filme) e Stowe dedicadíssima, utilizando-se de todas as possibilidades dramáticas de seu personagem. Destaque para a brilhante trilha sonora e para uma direção de arte que não permite nem um mísero cenário de "normalidade" completa. A edição, por outro lado, ressalta as surpresas da trama, e isso soa forçado e didático demais. Não obstante, o roteiro é um primor.

O entrelaçamento das ideias de viagem no tempo e loucura é simplesmente perfeita. A insanidade tocaia cada minuto de projeção, dando uma sensação de iminente desorientação como fruto da viagem no tempo. Esta, por outro lado, torna visível a presença de mais de uma realidade, e lentamente influi na mente dos personagens. Ao passo que a subversão do típico transporte pelo tempo causa ainda mais confusão, e várias possibilidades se criam - se a dimensão não fosse única, se o tempo não fosse cíclico, se a viagem no tempo não estivesse amalgamada com o tempo em si, os personagens não seriam loucos? Mas Os Doze Macacos não se propõe a estudar os "e se", pois tudo faz parte de uma formação sólida e imutável.

Assim, não só é um exercício narrativo interessante, é também metalinguístico: a eternidade e estaticidade da linha temporal se relacionada com a eternidade imutabilidade do filme. Com isso, a experiência se torna única, mas nunca simples ou palatável, mesmo que nada possa ser mudado. Um retrato brutal da inescapável loucura da raça humana.
9,0

Vi Três Reis. Mas porra, que sessão! O ótimo roteiro e a excelente direção equilibram o humor negro e a seriedade de um jeito que não parece possível. Se o começo é uma aventura irresponsável cheia de ironias sobre a guerra, o enredo engrossa e a crítica também, em set-pieces bem boladas e bem realizadas (o caminhão na aldeia, o final na fronteira) e um tom de sátira que não se acovarda perante cenas muito pesadas. O diretor, dotado de um surpreendente olho para ação, acompanha tudo com uma câmera enérgica e intrusiva, e também sabe dar um passo para trás ao criar enquadramentos bonitos e abrangentes. A fotografia, de cores fortes, ajuda nesse quesito.

Outros valores, como uma rápida mas clara edição, o som e a trilha sonora, dão mais camadas ao hiper-realismo que é a meta da obra, terminando de criar um ambiente de exageros que emprestam pungência à sátira da Guerra do Golfo. A trama abarca poderosas ironias, atacando abertamente as falhas desastrosas de todos os governos envolvidos no conflito. O foco é nos perdedores, nos que vivem de acordo com o sistema, e o pandemônio causado pelo comando oficial é reforçado pela punição do pensamento altruísta - que é, teoricamente, o que importa.

Os personagens, pegos nesse impasse, são muito bem defendidos por Wahlberg, sensacional, e pelo breve papel de Taghmaoui (o interrogador), que dá profundidade e sinceridade a suas falas. Jonze também está bem, e se Clooney e Ice Cube não adicionam absolutamente nada a seus personagens, isso apenas enfraquece arcos narrativos que já têm sua relevância. Dunn, por outro lado, encarna bem a visão (idealizada, sim) do jornalismo como elemento mediador de vários lados de um acontecimento ao mesmo tempo, como o final atesta. Com sua abordagem paralela, mas distinta, o filme se prova algo além da realidade: é uma realidade pintada com tintas berrantes, explorada a fundo em cada um de seus elementos. E isso é característica de grande Cinema.
9,0

Hoje assisti meu segundo Godard (com muito medo): O Pequeno Soldado. Gostei ainda mais que de Acossado. É desagradável que nem o diabo, seja como narrativa, seja como imagem. É picotado em alguns momentos e encorpado em outros. Mas o que se sobressai é como o filme não toma partido nas ideologias que desfilam pela trama. O que acontece na vida de Bruno é solto, episódico, em uma série de sequências encenadas, filmadas e editadas de forma ágil. Elas representam a liberdade, e, mais especificamente, a liberdade de ideiais e pensamentos políticos.

Não por acaso, um longo plano é usado no monólogo poderoso de Bruno sobre sua rejeição aos ideários políticos, por causa da simplicidade de suas impressões e gostos pessoais. O comprimento da cena parece conotar um valor de ideologia a seu discurso, como se ser contra um conunto de ideias fosse um ideal. Dois outros momentos mostram o inverso. Quando ele fotografa Veronica, a ação é esparsa, destroncada em narrações em off, comentários dos dois personagens, planos americanos, fechados, muito fechados, música no ambiente, silêncio logo depois, e Bruno não só convive bem com essas mudanças: ele faz parte ativa delas. Isso leva a um diálogo com Jacques:

- O que você está pensando?
- Não sei.
- Devia saber.
Bruno abre a boca para falar, e para.
- O que ia dizendo?
- Nada.
- Diga!
- Mudei de ideia.

No breve instante em que tira o cigarro da boca e enche os pulmões, ele deixa de acreditar no que ia dizer, e não o diz. Não só isso já oferece a personalidade do protagonista cedo na narrativa, como parece dialogar com toda a estética, assumidamente caótica, do filme. A intenção de Godard não existia já formada - nem como rigor artístico, e muito menos como compromisso político -, e vai se metamorfoseando a cada minuto. Assim, como Bruno, ele se afirma destituído de ideologias, pela simples incapacidade de se atrelar a qualquer uma e segui-la fielmente. Isso diminuiria seu Cinema.
9,0

Transformers é um filme-pipoca relativamente bem azeitado. Mesmo com decupagem e montagem torturantes, ainda havia um senso de ação e de divertimento. A tensão e o mistério eram apenas o granulado no brigadeiro: criam a ilusão de dar mais sabor à receita. Michael Bay sabia muito bem que esses elementos apenas construíam o que era necessário na trama, e que, sem isso, a diversão seria prejudicada. Problemas sérios apareciam, por outro lado, através de estereótipos ofensivos e breves cenas e diálogos de moral pavorosa, mostrando racismo perante todo tipo de estrangeiro e uma solenidade vergonhosa ao tratar do exército.

Isso leva, claro, à continuação. Vingança dos Derrotados continua escancarando uma posição lamentável a certos grupos. Em uma tomada curtíssima, vemos um robô atravessando um prédio inteiro numa barulhenta explosão, ao que um chinês continua calmamente a comer sua refeição-tipicamente-chinesa. Bay até espera o estardalhaço passar para fazer tocar uma canção chinesa genérica. É possível escolher a visão ofensiva dentre uma vasta gama de possibilidades. A cena pode indicar que esse povo não tem preocupação com nada; que eles são acomodados com o barulho e a destruição; que são pessoas de comportamento autômato, inócuo e basicamente ignorante; pode-se até dizer que Bay está chamando os chineses de surdos e que a música deles é ruim.

Até aí, tudo bem. Nada que não fosse uma praga já no filme anterior, mesmo se formos contar casos berrantes, como os transformers gêmeos e o escandaloso hacker latino. O problema é que o diretor perde totalmente o fio da meada que havia conduzido moderadamente bem dois anos antes. Já estava claro que a ofensa pode ser feita em 2 minutos – caso do indiano que atrapalha serviços militares urgentes. Também não havia dúvida de que as coisas funcionam de outro modo com a diversão, que precisa ser montada com habilidade ao longo de todo o filme. Esse equilíbrio fez a batalha na cidade, uma aula de como não editar uma cena de ação, muito mais tolerável, por realmente expandir o tamanho da luta. Aqui tudo muda. Já fomos introduzidos ao mundo dos Cybertronianos, então a adrenalina “pode” tomar a liderança da projeção.

Isso é notável na introdução em Xangai. Embora o espaço da ação tenha dimensões imensas, a excitação é quase nula. Rapidamente um robô 4 vezes maior que Optimus Prime é derrotado. E o estrago que ele deixa? É monstruoso, mas não fica bem claro o que está sendo destruído. As grandiosas partículas de destruição funcionam num trailer, mas, no filme, mesmo a mais impressionante demolição é homogeneizada e perde todo seu poder de impressionar. A culpa é da edição, assim como de toda a lógica da cena: não há tempo algum entre achar o inimigo, revelá-lo, confrontá-lo e vencê-lo, assim, nada leva a nada. A pior escolha foi mostrar uma luta rotineira usando uma criatura muito maior que todas as vistas antes: não há uma escalada de tensão, de adrenalina e nem mesmo de dimensão. Tudo é jogado sem qualquer tipo de dosagem aparente.

Mais tarde, na luta da floresta, um tropeço semelhante. O espaço e os inimigos são trocados rápido demais para criar qualquer tipo de emoção. Há um momento heroico (a medonha trilha sonora diz isso) em que Prime luta com muitos inimigos de uma vez – quantos, é uma incógnita. Poucos segundos antes, não havia qualquer sinal de perigo, mas ele se eleva e supera esse desafio ilusório, arrebentando a cabeça de um robô (que ninguém sabia que estava ali) usando ganchos (que ninguém sabia que ele podia usar). E Megatron, o nêmesis supremo, entra na briga já perdendo feio, o que faz dele um vilão horrivelmente anticlimático. Para finalizar, ele mata o herói robótico, na mais confusa jogada de tensões dos últimos tempos, e Bay quer que isso seja um momento emocionante.

Esse é o exemplo cabal de como ele perde totalmente o controle sobre seu filme, errando até mesmo nas cenas de ação, que não têm contexto, expectativa nem noção de espaço. Assim, o grande preparo para a batalha no deserto é bem-vindo. Mas, logo, fracasso de novo: quando os tiros começam, fica impossível saber quem está lá, quem está de que lado e quem está ganhando. Isso é destruir a base para a relação do espectador com os mocinhos da história – peça-chave de qualquer roteiro derivativo e maniqueísta. E é nesse momento que o pai de Sam solta a frase que define (negativamente) todo o filme:

“Não sei o que está acontecendo, mas temos que correr.”

Talvez esse seja o maior tiro no pé de todos. A frase explicita a opção de Bay: ele abriu mão de construir boas set pieces, de tornar as lutas inteligíveis, de assumir que tudo aquilo é diversão pura, em detrimento da intensidade provinda do caos. Para começar, “Transformers” nunca foi tensão. Qualquer tipo de mistério e segredo da narrativa é mantido apenas para criar deslumbramento mais tarde, e tudo que explode o faz para chamar a atenção. Quando ele diz que quer deixar o espectador tenso, a falha é dupla, pois ocorre no nível da proposta e da realização. Não existe tensão se ela anula a diversão, e ambas são extintas categoricamente nessa desculpa esfarrapada para a tosquíssima filmagem.

Assim, o diretor deixa de ser o pateta viciado em explosões, e se torna um autômato que entrega barulho aleatório de forma automática. Ele perde sua marca, que já era bastante pejorativa, por pura incompetência. Estranhamente, isso faz dele um cineasta ainda pior, pois todos os seus vícios estão presentes, mas totalmente destituídos de força destrutiva. E pior que uma explosão gratuita, é uma explosão gratuita que não destrói nada.
2,5

quinta-feira, 25 de junho de 2009

5

Aprés vous...
O que “Por Gentileza” promete é oferecer uma visão complexa e reflexiva sobre a natureza do altruísmo. Antoine (Daniel Auteil) é um sommalier que conhece um suicida, chamado Louis (José Garcia), e o leva para casa para ajudá-lo. Essa boa ação, no entanto, vai ganhando contornos insanos, enquanto Antoine o motivo da depressão de Louis – sua ex-namorada, Blanche (Sandrine Kiberlain) – e vai tendo sua própria vida profundamente perturbada pela presença do homem. O problema é que ele faz literalmente tudo para ajudar o depressivo.

A parte curiosa é que ele só faz as coisas do jeito que sabe e/ou acha melhor. Ele nega a verdade além da conta, exagerando muito na máxima “algumas pessoas merecem algo melhor que a verdade”. Aqui, ele não só distorce o que aconteceu e está acontecendo, mas também interfere diretamente na vida de Blanche e Louis, para que os dois possam reatar. Mais de uma vez ele dá conselhos para a mulher largar seu atual namorado, compra flores apenas para espionar sua vida e esconde tudo do suicida, por julgar ser melhor assim. Igualmente, o emprego é arranjado para o amigo em detrimento de gente bem mais apta e promissora.

Isso leva a uma discussão interessante: graças a certas reviravoltas do roteiro, Louis fica feliz e disposto, e ele passa de desastrado a bom profissional. Mais do que mostrar a sofrível inversão de papéis (problema que o roteiro apresenta e o diretor Pierre Salvadori só piora com seu didatismo), esse detalhe mostra que ninguém é um depressivo daninho o tempo todo. Mas, oras, de que adianta um emprego se a eficiência do empregado depende de seu humor volátil? A sociedade cobra estabilidade formal, e só informalmente temos o direito de sermos instáveis. E é esse o desenvolvimento principal do personagem de Antoine.

Embora caia numa resolução previsível e pouco imaginativa, a trajetória dele ganha força ao ressaltar essa ilusão de estabilidade. Pode-se dizer que ele é, de fato, altruísta, e até demais. Não é para seu bem que ele gasta 600 euros em flores, mesmo que as use de forma inteligente mais tarde. Logo, mesmo sabendo que suas tentativas de ajudar causam situações caóticas, ele continua fazendo coisas pelo bem dos outros, e acha melhor que ninguém saiba. Assim, ele mente sem parar, para esconder que está na verdade interferindo ativamente na vida dos outros. Fica a impressão de que só se seu plano der certo é que valerá a pena ter causado tantos problemas, e mentir é apenas a garantia de que nada cairá por terra.

Assim, o roteiro tropeça quando força demais o egoísmo oculto nesse altruísmo, num julgamento um tanto automático de valores. Seria muito mais interessante abrir mão das reviravoltas e continuar enfocando o engodo de fazer as coisas ficar estáveis com as próprias mãos. A obra se tornaria ainda mais melancólica do que já é, mas a proposta deixa claro que o equilíbrio é impossível na vida do ser humano, e desenvolver isso sem cair num romance aleatório seria mais uma das boas ideias do roteiro, que anda rápido, e não se apoia em causalidades fáceis – exceção que confirma a regra: o isqueiro.

Há elipses interessantes de se notar, como o teste de emprego que Antoine arranja para Louis: fica claro que o sommalier treinou o amigo, e que este interpreta muitas das dicas de forma totalmente equivocada. Algumas gags acabam longas demais, mas a edição salva quase todas da direção tosca, que infelizmente puxa muito do filme para baixo. A repetitividade visual é sofrível, informações já dadas pelo texto são reafirmadas pela câmera de Salvadori, e em pouco tempo, essas inseguranças do diretor se tornam muito enfadonhas. Sorte que Auteil brilha em seu papel, mesmo quando o personagem está inglório para o grande ator. Sua interpretação de bêbado é excelente, e as pequenas mentiras improvisadas que tem de criar a todo tempo ganham uma naturalidade incrível.

Embora o retrato do altruísmo passe para uma discussão sobre a estabilidade interna do ser humano, a primeira é um passo da evolução e é desenvolvida a contento, enquanto a segunda é explorada com menos afinco e não reflete, no final apressado, toda a abrangência da instabilidade que todos os personagens do longa sofrem.
6,0

Homem de Ferro e Cloverfield. O primeiro continua divertido, até passa rápido e tem umas soluções narrativas bem legais. Tony Stark é um personagem muito interessante, e o final é de matar. Mas ainda tem muita coisa incômoda no tocante à vilãozada. Continua nota 7,5. O segundo também não cresceu muito nem caiu muito no meu conceito, também se mantém no 7,5. Se bem que deu pra reparar em bem mais nuances erradinhas do roteiro, umas ferramentinhas narrativas que soam didáticas demais e entregam a suspensão da descrença. Mas o bom uso de som, efeitos visuais e filmagem amadora fazem seu trabalho de detonar os sentidos e criar tensão, a ponto de esses problemas só incomodarem por pouco tempo.

Vi O Deserto Vermelho, do grandessíssimo Antonioni. O que dizer de um filme em que Vitti engrandece até perante A Aventura e O Eclipse? O que dizer das imagens sempre maravilhosas do diretor? O que dizer de um roteiro que é, diferentemente de A Noite, expositivo para levar os próprios temas do mestre ainda mais longe? Muito, isso é o que se tem a dizer. Mas não sei quando direi tudo isso.
9,5

A Garota Ideal deve ser um dos filmes mais esperançosos dos últimos anos. Sem dúvida há muitos meios de se ressaltar qualidades em personagens, e estes normalmente são metonímias para crença na bondade humana, num contexto geral. A obra do diretor Craig Gillespie e da roteirista Nancy Oliver não tem como protagonista alguém que muda a vida, positivamente, de todos ao redor (um grande ponto a seu favor, diga-se), ou que mostra o valor de fazer o bem para o próximo. O que, primariamente, faz a mensagem funcionar é o fato de ela não dar a mínima para o que é feito no assustadoramente (in)fértil subgênero filme-de-indivíduo-desajustado.

Sim, existe a estranheza dos amigos sendo lentamente transformada em rotina. Há tensão quanto ao perigo que a instabilidade psicológica representa – elemento muito bem aproveitado pelos atores, diga-se. A comunidade que reconhece o problema do louco e aceita viver sob suas regras peculiares? Está lá. Mas não é na bondade dos vizinhos que a esperança é notável. Ela está na própria figura Lars Lindstrom (Ryan Gosling).

É bem simples: um homem provido de algum tipo de distúrbio anti-social tem tudo para denunciar os podres da sociedade, ao mesmo tempo em que descobre as pequenas faíscas de beleza que fazem todos dar as mãos no final e saltitarem para algum lugar, certo? Não é o caso. O que existe em redor do protagonista não é o que o define. Mais: ele não chega ao outro extremo (igualmente piegas) de mudar a vida das pessoas que o ajudaram. O meio-termo é sensível e inteligente. Tudo acontece de dentro para fora, o que não é uma qualidade por si só, mas se torna uma quando despreza essas rotas fáceis e caminha com convicção até seu desfecho.

A conclusão da história importa menos que o fascinante trajeto até lá. A condição absolutamente interna de Lars, de início, dá a impressão antipática que todos ao seu redor parecem ter. Aliás, a diferenciação entre os vizinhos e o espectador é clara: aqueles vêem na boneca Bianca um motivo para ajudar, pois finalmente percebem, depois de muito relutar, que o homem tem um problema. O espectador, por sua vez, o vê como doente desde o início, mas, incapaz de ajudar como sempre, não se interessa pela simples perturbação mental. Ao longo do tempo, no entanto, é mais fácil se relacionar, não porque ele se torna mais sociável, mas porque sua personalidade se desnuda. Ele vai se revelando mais complexo e, assim, mais convidativo para a exploração. O roteiro, cadenciado, vai oferecendo as camadas do personagem a conta-gotas, e, assim, é depois da reação emocional (o advento de Bianca) que o escrutínio do personagem começa.

De fato, a tragédia do parto e a rejeição física ao contato humano são explícitas demais, indo contra o movimento de dentro para fora. Porém, se a primeira é quase jogada ao acaso (determinista, mas não em relação ao problema central), a segunda não é simples sintoma da condição, mas sim uma porta para oportunidades dramatúrgicas. Além do desnudamento de roupas, propriamente dito, causado pelo clima e pelo distanciamento de Bianca, Lars vai sendo descascado. Não com seu consentimento (algo que Gosling entende maravilhosamente bem), pois o homem é todo interno. É o simples vê-lo, a pura vontade do espectador de explorar o personagem, que revela toda sua complexidade. O papel de Patricia Clarkson (Dagmar) é fenomenal nesse aspecto: ela não interfere no processo do protagonista, apenas o observa, para dar aos familiares um relatório acurado do que está ocorrendo. Ela é passiva: assiste quando não pode fazer nada e só faz o que lhe é permitido. A cura, ela deixa claro, está evoluindo a partir de Lars.

A impressão que fica é que a existência ou não de Dagmar, ou de toda uma comunidade entendendo Bianca e aceitando-a como gente é supérflua. O roteiro cuidadosamente tece as “falas” da boneca de modo a nenhuma precisar de resposta. O protagonista se esquiva de qualquer tipo de agressão a sua nova relação, e, se isso é um mecanismo típico de pessoas com auto-estima baixa, é exatamente esse o ponto. Ele francamente ignora tudo e todos pois está completamente focado em outro mundo, que tem maiores chances de recuperá-lo do que um soco de realidade direto no queixo. Por outro lado, os bonecos dos colegas de trabalho são menos humanos, mas servem como resquícios de sensações e causam involução – o que é válido, mesmo que a discussão sobre o valor atribuído aos objetos fique pateticamente exposta.

Assim, a fantasia particular de Lars não é usada como instrumento de fuga, e sim de enfrentamento. Palmas para ele, que tem anticorpos para lutar contra problemas psicológicos, uma ideia quase alienígena no mundo atual. Ele é a prova de que não são pessoas que irão ajudar quando o problema não tem nada a ver com elas. Por isso que a comunidade aceita de pronto, quase fácil demais, o jogo do protagonista. O problema não é deles, e, afinal, não existe nenhum esforço em brincar de faz de conta. Falta um comentário em relação a isso, já que cada um acha que está fazendo algo importante para a recuperação de Lars, quando, na verdade, está apenas varrendo as folhas da calçada em que ele anda. Fica claro que, se houvesse folhas, ele continuaria caminhando mesmo assim.

Não é vivendo com seus problemas que ele se prova “especial”: é superando-os. Mais que mostrar o poder que a sociedade tem sobre um homem, ou vice-versa, A Garota Ideal mostra o poder que um homem tem sobre si mesmo, e como a sociedade é apenas pano de fundo de um processo hercúleo, utopicamente desenvolvido de evolução interior. A inserção do indivíduo de volta em um meio social é apenas consequência de seu esforço. É como uma auto-congratulação pelo feito, já que, após a cura, Lars é inegavelmente superior a boa parte de seus convivas.

O final, outro momento expositivo demais, não tem nada de genial, sendo apenas a consequência óbvia do trajeto. A última frase surge atabalhoada, com pressa de acabar e mostrar a que veio, e, não fosse o fino trato dado a tudo que veio antes, ela seria um problema relativamente sério. Como as coisas estão arranjadas, é apenas um pequeno engodo de uma roteirista que já tinha um estoque monumental de acertos.
8,5

segunda-feira, 18 de maio de 2009

4

O subgênero de “filme-catástrofe” tem pelo menos um problema sério já de partida: como aliar o pessimismo de uma tragédia (às vezes global) com a possibilidade de entretenimento. Esse segundo elemento acaba carecendo de certo positivismo. A sensação de desespero, de tensão e de negativismo é bem-vinda, e o espectador a busca, mas há de haver algum tipo de virada para compensar esse peso. Os inúmeros exemplares desenvolveram inúmeras táticas, e os realizadores de Presságio tinham duas opções: escolher uma das já feitas, ou criar uma nova. O que fizeram não foi nenhum dos dois.

Se o tipo de peça-chave usada não é nem um pouco original, dentro dessa classe restrita ela é uma abordagem no mínimo curiosa – pode-se citar o japonês Casshern, mas este tem o apocalipse como ferramenta, e não objetivo. É uma antítese, em boa parte: só há originalidade ao se usar lugares-comuns. Não que Alex Proyas não faça bom uso da direção para refrescar ideias batidas, com planos elaborados e empolgantes. Até mesmo o roteiro em si tenta se prover de faíscas para dar algum tipo de vida aos numerosos clichês, como na primeira cena heroica de John, em que o esse heroísmo é sabiamente ignorado pelo personagem de Grace.

Mesmo assim, praticamente todos os elementos que a trama necessita para continuar andando são tirados de obras recentes, e não são soluções fáceis, mas facílimas, para conectar as pontas soltas. Logo, todo e qualquer problema familiar dos personagens falha miseravelmente em desenvolvê-los, simplesmente porque são os dramas de sempre. Não obstante, a opção por manter os elementos do roteiro numa lógica determinista, em que nada acontece por acaso, é uma das únicas boas escolhas que os três roteiristas conseguiram confeccionar. Mesmo enchendo o enredo de elementos não exatamente necessários (os “seres sussurrantes” não precisavam de nem metade daquelas aparições físicas), eles acertam ao dar um forte contexto místico aos eventos. E essa bela honestidade (“Sim, estamos colocando religiões no centro da história”) pode lembrar Sinais, mas as criaturas de Presságio enriquecem mais sua narrativa.

Se o protagonista só tem força em cenas ocasionais, Cage reflete essa irregularidade em sua interpretação. Ele se sai muito bem em cenas corriqueiras e singelas, mas, quando confrontado com elementos fantásticos – o grande desafio desse tipo de papel –, sua credibilidade cai com força, chegando a constranger em certos momentos. Byrne também balança, caracterizando bem sua rasa personagem, mas criando uma perturbação às vezes excessiva. Assim, sobram papéis pequenos, como o de Hopgood e o de Townsend, e estes acabam oferecendo as melhores atuações do longa, retratando a família de John com graça. Pouco se pode dizer de Cantebury e Robinson, já que se revelam atores mirins de pouca expressão.

Nos departamentos técnicos, há muitos destaques. Os efeitos visuais, salvo os animais em CGI, são excelentes, dando fidelidade não só a imagens incríveis, como também a acontecimentos realistas como os acidentes – destaque para a excepcional cena do avião. Também ajuda na tensão a eficiente edição, que comprova na tragédia de metrô que um plano-sequência não é o único meio de intensificar uma cena. Além disso, os cortes pesados e climáticos em cada mudança de dia ressaltam a iminência da tragédia. Talvez o melhor aspecto do filme, a fotografia conta com uma iluminação de primeira, e não perde de vista a tensão, seja escondendo a face dos “seres”, seja criando um perturbadora luz solar – e é brilhante o modo agourento como o Sol é usado nos enquadramentos da parte final.

Além disso, a utilização do som é sóbria, mesmo em meio ao mais completo caos. Em vez de cacofonia, há uma seleção de ruídos precisos, altos, que transmitem perfeitamente a proximidade de destruição. A música de Marco Beltrami é bem dosada, via de regra, e cria até um valor diegético, no retorno de John a casa depois do acidente de avião: no fundo, um som similar ao de uma turbina toca sutilmente, para dar a sensação de terror já distante, mas ainda presente. Ademais, os acordes histéricos e agudos quase sempre funcionam para criar uma atmosfera macabra, e composições mais clássicas (no sentido mais literal possível) ganham notas marcantes.

Embora todas essas qualidades não destituam Presságio de seus grandes defeitos, ao menos fazem jus a uma obra que tem a coragem de se enveredar por mais de uma crença e por temas e sensações poderosos. O fim do mundo é reduzido a um grandioso e belo espetáculo como sempre, mas é o que vem depois – e o fato de haver algo depois – que dá o bem-vindo diferencial.
7,5

Doze homens e uma sentença é uma obra essencial para se entender o uso de coincidências e possibilidades no Cinema. Talvez a Arte que mais sofre com o ceticismo, a Sétima é constantemente confrontada com reações como “ei!, isso não seria muito provável!”, ou “ah, mas isso é coincidência demais!” O filme de estreia de Sidney Lumet torna esses acasos e improbabilidades o combustível do enredo, de tal modo que o caso que o júri tem de analisar não é solucionado. O final pode passar uma sensação de triunfo, mas é mais pela dedicação dos doze homens ao sistema judiciário que os EUA criaram, e não porque tudo se resolveu. Afinal, o garoto era inocente ou não? É absolutamente impossível dizer.

O enfoque não é na inocência ou culpa do réu, e sim na moral dos homens, na ética que lhes toca mais profundamente. Logo, cada um dos doze personagens tem uma visão bastante particular, e cada um passa por mudanças de julgamento ao longo do tempo. O que se dá, ao final, é uma noção coletiva de que estar com certeza não é possível naquele caso, e que a condenação de um ser humano baseado em incertezas é muito mais séria que o possível risco de dar a liberdade a um assassino. Se, por um lado, essa confiança na inocência é perigosa, o impecável roteiro mostra como a dúvida abala as pessoas, e como a certeza (às vezes cega) é muito mais cômoda.

Não é uma crítica direta ao sistema de júri estadunidense, mas é uma demonstração delicada de como a mentalidade pessoal, desde os mais potentes pragmatismos até os mais ínfimos enganos, pode fazer tudo ruir. É sensível como a trama entrelaça as individualidades dos personagens com a fragilidade da verdade, que é uma só, mas é praticamente impossível de ser alcançada. As mentiras, pressuposições e aproximações pessoais são muito mais agradáveis e simples, e são normalmente a base para constatações tidas como definitivas.

Assim, o ponto a que se chega é que o estudo das probabilidades não leva à certeza, mas a um ideal diferente. Na trama, esse ideal é refletido pela ação implícita na definição de “culpado” e “inocente”. Dar o veredicto inocente é ser, talvez, omisso quanto a um crime. Dar o veredicto culpado, por outro lado, é ser ativo na execução de uma pessoa que talvez não seja culpada. E, na impossibilidade de encontrar a realidade completa, de solucionar o caso com justiça absoluta, os doze júris preferem se ater à incerteza menos danosa, numa bela demonstração de racionalidade altruísta.

Lumet, por outro lado, usa essa discussão de outro modo. Apesar de criar uma ambientação documental (ajudado pelo cenário único e por uma dúzia de atores, todos vigorosos), há intromissão dramática e estética no que poderia ter sido feito aos moldes do cinéma vérité. Logo, o ideal que o diretor busca não é o da realidade, porque seu filme é de ficção – e o filmar-realidade não é simples de ser alcançado. O que ele busca é algo mais: assim, ele afirma o Cinema como suporte para uma rede de eventos e ideias que não se subjugam à verossimilhança completa. Um filme realista poderia ter escolhido personagens de origens e mentalidades mais homogêneas, pelo acaso, mas isso tornaria tudo menos complexo. Se não é fácil confeccionar uma ficção realista, o desafio não é menor em juntar figuras e desenhar comportamentos e pensamentos hipotéticos, influenciados uns pelos outros e pelas circunstâncias. A (im)probabilidade não é relevante quando valores profundos como a dramaturgia, a mensagem e a solidez da obra estão em jogo.

O que faz de Blow Up uma obra de gênio não é simplesmente seu apuro estético avassalador. É a extrema oposição que o visual faz com a fala. Quem aprecia Antonioni está acostumado a ver a imagem assomar acima de diálogos, tramas e até mesmo personagens (vide O Eclipse), mas no primeiro filme em língua inglesa do italiano, a discussão atinge um novo nível. Ela se insinua através de um protagonista fotógrafo, que ganha a vida para dizer o que quer através de imagens. Isso fica claro na cena em que um colega de trabalho diz que acabou de bolar legendas para as fotos, e nem se preocupa em citá-las. Isso demonstra o mundo silencioso, visual, em que Thomas vive, um mundo em que ele não tem voz, no sentido literal. O que ele diz pelas fotografias, por outro lado, também é de pouca importância.

O mote do filme, o assassinato, demonstra muito sobre o personagem. E a centralidade do evento vai muito além de sua demora em surgir na narrativa, como reflexo da displicência perante acontecimentos sérios. A questão é que a evidência fotográfica, e praticamente todas as descobertas relacionadas, poderiam entregar o crime já resolvido nas mãos da polícia. Assim, o rumo que os eventos tomam diz muito sobre as limitações pessoais do protagonista. É com habilidade que o roteiro costura ações que vão se desviando da eficiência, até que a apatia contamine toda a história – chegando ao ápice num anticlímax violento, totalmente oposto à euforia inicial.

Essa urgência é artificial, algo que o enredo inteligentemente comprime em sua cronologia: a história se passa em um só dia. Os eventos são numerosos, tanto que elipses temporais parecem existir para juntá-los em um todo mais cadenciado e brando. Mas não, é um único dia, de ritmo intenso, como se estivesse abarrotado de realizações importantíssimas, e não está. Para adicionar aquele paradoxo típico de Antonioni, é nesse vácuo que o personagem é construído, exatamente em função de seu vazio. Seus minúsculos gestos (o pousar delicado de um toco de cigarro na estátua), as mudanças de humor (a reação às duas garotas que querem ser fotografadas) e o modo como trata as mulheres em geral (que pode ir do desprezo profissional à misoginia pura) são amostras de como seu comportamento é arbitrário, e revelador. E isso dialoga diretamente com sua profissão.

Se, por um lado, ele faz fotografias de pouca “relevância”, em ambientes fechados, em dado momento ele se vê num parque, local aberto e incomum, tirando fotos que se tornam importantes. A ineficiência com a qual lida com essas informações é quase determinista, lembrando um pouco os personagens trágicos de Fellini, presos, como Thomas, a suas limitações profissionais e comportamentais. Nessa linha, o grupo de mímicos, que abrem o filme numa curiosa barulheira, é uma peça-chave na obra. O ambiente urbano, frio de Londres é como local de folga para tais profissionais: logo, eles gritam a plenos pulmões. Em uma situação mais propensa, se voltam ao silêncio da mímica, mostrando que, como o protagonista, não precisam de palavras para criarem comunicação.

Nessa interpretação se forma outro questionamento: na arte de falar sem palavras, apenas com imagens, há os que conseguem e os que não conseguem. Os mímicos certamente têm sucesso, a ponto de fazer alguém pegar uma bola de tênis imaginária. Se o protagonista tem, isso é explicitado no último segundo antes do “The End”, em que Antonioni se assume de forma definitiva como um terceiro profissional da imagem. Ele também se esforça para criar algo (Thomas) que não existe dentro do universo do filme, esmiuçando razões para essa não-existência: futilidade, deslocamento, inaptidão, falta de bom senso, covardia, maus costumes. Mais importante que as composições primorosas que a câmera do cineasta habilmente capta é o vasto leque de possibilidades que ele abre para explicar um vazio.
10,0

“Isso já não é mais aplauso, mas um pretexto para esperarem que os corredores esvaziem”

Com essa frase, Margo Channing (Bette Davis) enriquece seu retrato consideravelmente, além de revelar um caminho de interpretação fascinante para A Malvada. A fala denota, imediatamente, um tipo de modéstia que não faz sentido perto do que foi mostrado da personagem até então. O uso dessa humildade, logo, ganha outro valor, por ser tão avesso à personalidade de Margo: é a visão dela que se projeta por essas palavras. Enxergar as pessoas como bajuladoras, em que só fazem algo se é para produzir algum bem direto para si mesmas, indica como funciona a cabeça da estrela, como ela não consegue dissociar um ato dos interesses que podem existir por trás. Fica a impressão de que elogios sempre carregam segundas intenções, e, mais do que dizer algo sobre Channing, isso diz muito sobre Eve Harrington (Anne Baxter).

A idolatria que ela nutre por Margo durante boa parte do filme é a mesma que faz as pessoas baterem palmas muito depois de as cortinas do teatro baixarem. Há algo por trás. No caso da idólatra, no entanto, tais interesses levantam questões sobre o próprio atuar, já que sua pose e seus segredos a levam a criar uma personagem inteiramente nova. Há uma poção de cenas que, além de fazer paralelos entre o fingimento do teatro e o da vida real, ainda mostram como estrelas conquistam, na acepção mais bélica da palavra, sua carreira. Os admiradores são como que uma consequência dessa luta, logo, fica claro que a derrocada está inclusa nas obrigações da ascensão. Mesmo assim, Mankiewicz consegue diferenciar Eve de Margo desde o começo, mostrando que as semelhanças são ou artificiais ou, mais notadamente, superficiais, em uma primeira análise.

As diferenças são tão grandes que num dos momentos-chave da trama um acontecimento bombástico cai por terra por causa de uma decisão surpreendente de Channing, que nunca poderia ser tomada por Harrington – até onde sua personagem é desenvolvida. No entanto, a qualidade cíclica do roteiro deixa o passado da veterana escondido, e acena para um círculo vicioso de ambições de estrelato. Assim, as diferenças que podem ser traçadas entre as duas são imediatas, não querendo dizer, exatamente, que suas índoles e atitudes sempre foram diferentes. A única certeza é a diferença de ambições (e, como causa e consequência, de idade) das duas mulheres durante o período que o enredo cobre. Por mais que as tramoias de Eve destoem da simples arrogância de Margo – que, aliás, denota falta de autoconfiança –, nada impede que a personagem de Davis tenha, também, tramado para subir na vida. Afinal, ela vai empalidecendo ao longo da história, a ponto de se tornar apenas uma citação num discurso – se ela vampirizou um ídolo, é claro que este será prontamente esquecido. No final, o nome que fica é Eve Harrington – que se transforma numa deturpação violenta do “nome artístico” –, e ele já carrega a grandiosidade e a iminente queda que Margo Channing viveu.
10,0

quarta-feira, 6 de maio de 2009

4

É com as imagens que Wong Kar-Wai busca contar Amor à flor da pele. Ele implode a continuidade convencional, dando um aspecto absurdamente episódico à narrativa, ao passo em que cria uma estética fluida e homogênea. O preciosismo é extremo, da direção de arte à fotografia, dos figurinos ao uso constante de slow-motion: o diretor estilhaça o roteiro para remendá-lo em imagens. Outros elementos também se fazem presentes para tal fim, como a bela trilha sonora, o som e as atuações do casal protagonista.

Enquanto a música de Shigeru Umebayashi e Mike Galasso acompanha rimas (ou melhor: repetições) visuais, o som cria uma interferência relativamente barulhenta do mundo externo, lembrando a presença deste na vida secreta da Sra. Chan e do Sr. Chow. Leung e Cheung, por sua vez, cumprem o desafio de explorar seus personagens em minúsculos fragmentos de cena. O jogo cênico dos "ensaios" demonstra muito bem a capacidade dos atores para juntar os hiatos do roteiro e criar toda um histórico sentimental. Os diálogos tentam compensar essas lacunas, pois são, em sua maioria, expositivos demais (não tanto em relação aos eventos, e sim à declaração das emoções), e isso fere a proposta minimalista.

Por outro lado, o inteligente ideal estético cumpre todos os papéis requeridos: conecta momentos deslocados, cria um ambiente onírico, reflete uma relação em que tudo tem de ser perfeito para funcionar, torna corriqueira e repetitiva essa perfeição e, através de movimentos de câmera quase parnasianos, ressalta a sutil evolução do relacionamento. Isso vai muito além da simples estetização do romance, e cristaliza a relevância artística da obra.
9,0

Desde a primeira cena, o diretor Andrzej Wajda propõe Katyń como um estudo sobre as transfigurações dramáticas e ideológicas de sua história sobre a Segunda Guerra Mundial. A sequência de abertura mostra uma turba de poloneses atravessando uma ponte para escapar dos nazistas, que invadiram seu país. Do outro lado, no entanto, vem outra multidão, que anuncia estar fugindo da recém-iniciada invasão por parte dos soviéticos. E, no meio do movimento, a informação é entoada várias vezes, e ninguém parece ouvir, continuando a marcha desesperada para fora. É assim, sem caos barulhento e desnecessário, que se constrói a primeira transformação: aquela gente vai sendo encurralada por um acordo que foi feito sem o consentimento público. Uma fuga se torna duas, e logo, todos estão encurralados, presos numa espiral de repressão. A união dos inimigos é feita sem transição, e isso marca boa parte dos acontecimentos políticos retratados.

O mote, a passagem de culpa da Rússia para a Alemanha, é feita da mesma forma. Do dia para a noite o massacre de Katyń foi perpetrado pelos alemães, e não pelos russos, simplesmente porque eles findaram o acordo com os nazistas, tomaram a Polônia e a controlam com mão de ferro. A política é vista como um sistema que opera secretamente, sem permissão ou aviso, deixando claras apenas as proibições e obrigações do povo. Isso leva a um esforço triste, mas pungente: a necessidade de revelar a verdade. Fatos falsos são instaurados de sopetão, mas a realidade tem de ser conquistada, sangrada pelos (e dos) cidadãos preocupados com ela. A cena final, embora óbvia ao extremo, é a apoteose inversa dessa busca pelos fatos puros. Vê-se, pela primeira vez, a supressão gradual, grão de terra por grão de terra, de um acontecimento depois de ser mostrado. No quesito narrativo, essa inversão da cronologia dos eventos é forte, mesmo que a metáfora de “enterrar a verdade” seja preguiçosa.

Metáforas, por sinal, podem ser confundidas com os processos transformativos que Wajda adota ao longo de seu filme. Pode-se argumentar que o trem que levará os poloneses a sua morte é simplesmente tomado por uma besta infernal, com seus guinchos, baforadas e opulência. No entanto, há um trajeto visual e sonoro: primeiro os trilhos e o som deixam claro que é uma locomotiva que se aproxima, e só quando ela chega, o diretor a faz virar um animal carnívoro e sanguinário. A câmera não busca a maquinaria e os pistões, e sim a indecisa forma, o deslocamento ensurdecedor e a fumaça que aquela criatura expira. O veículo é tornado, a olhos vistos, em algo diferente, e o foco é na metamorfose, não em sua fase final. É escancarando tal construção que o filme se torna imparcial, por não escolher nenhum dos lados do processo.

E essa imparcialidade é crucial para uma história que é fundada na ideia de luta pela verdade. Logo, a mãe do protagonista Andrzej (Artur Żmijewski), interpretada por uma magistral Maja Komorowska, reforça sua figura materna por se preocupar menos com a verdade e com a censura do governo, e mais com o conforto de imaginar seu filho e seu marido em segurança. Ela escolhe não calcular possibilidades “realistas”, que podem nunca chegar à realidade, e se agarrar a uma mentira certa. É a única maneira que encontra de proteger o que ama, em seu coração. Suas expressões de dor e desespero são constantes transições do sofrimento à resignação, em que ela aceita que se fazer cega e ignorante tem as suas consequências inescapáveis.

Ainda nessa linha, tal submissão se faz presente no roteiro na forma do romance entre Ewa e Tadeusz, na forma como é desenvolvido. Se o clima de flerte improvável soa “Hollywoodiano” ao extremo, é por bons motivos: seu desfecho causa a ruptura mais violenta do filme, fazendo um encontro fantasioso virar apenas mais um número na contagem de corpos. Isso, aliás, leva a dois aspectos distintos e notáveis. O primeiro consiste no modo como certos personagens são tratados: eles são simplesmente abandonados ao longo da narrativa, após cumprida sua função. Embora cenas como a última de Jerzy (Andrzej Chyra) ilustrem essa característica com solidez, não se pode deixar de lamentar essa transição, do algo importante para a ausência, para o nada. Ela acaba por enfraquecer uma obra calcada exatamente nas transformações que todas as coisas sofrem – e esse tipo de sacrifício que os roteiristas adotam soa piegas demais. O segundo aspecto é o que espanta toda essa convenção dramática, e se resume na encenação do massacre. As execuções mecânicas transfiguram toda a abordagem – consideravelmente melodramática, diga-se – em atos de frieza completa, postos em prática por autômatos que têm um esquema industrial de assassinato e manuseio de corpos. Esta é a mais grandiloquente metamorfose de “Katyń”, e dialoga com tudo que foi mostrado antes.

Se, por um lado, o melodrama e o formato convencional não são desculpados simplesmente por se prestarem a algo maior, por outro, mostram como Wajda estava ciente de tais elementos, e como os usou com propriedade. No final, o fato de ele os usar, de qualquer maneira, se torna muito menos relevante se comparado aos fins almejados.
8,0


Sindicato de Ladrões

Obra-prima. Que lindo ver um filme que não usa seus elementos, e sim os constrói cuidadosamente, desde a jaqueta como objeto narrativo até o bom e velho romance "proibido", passando pela metáfora dos pombos e pela imagem de mártir. Como são singelos os gestos e detalhes do roteiro! Que sutileza em retratar o sentimento cooletivo da época! Que som! Que fotografia! Que edição! Que protagonista complexo! Que Brando gigante! Mas, ora, quem não é gigante? J. Cobb, Malden, Marie Saint, Steiger, até mesmo Hamilton o são. E, usando o termo pela primeira vez em muito tempo, e merecidamente: é um tour-de-force o que Leonard Bernstein faz nesse filme. Poucas vezes ouvi uma trilha tão monstruosa, tão ciente de sua capacidade.
10,0

Fellini pode muito bem ser um dos cineastas mais sociais que o Cinema já produziu. Ele compreende muito bem as leis, os pressupostos, o funcionamento e as engrenagens da sociedade humana, e, utilizando-se da omissão, denuncia uma triste irredutibilidade quanto a tais preceitos. Em A Trapaça, isso é explorado diretamente, sem sutilezas, uma escolha bem consciente e característica.

A trajetória de Augusto (Broderick Crawford) segue uma linha de redenção de personagem, desafiando o meio em que vive. A humanidade que aflora no trapaceiro tem a ver com seu contato com Picasso (Richard Basehart), um jovem vigarista que ainda não mergulhou nesse mundo torpe. Se o filme foca nele em alguns momentos, é por causa de sua importância como peça comparativa.

Sob vários aspectos (o familiar, o profissional, o existencial, o humano), os homens têm algum tipo de relação, seja de similitude, seja de diferença. Enquanto o mais novo dá sinais de não se adequar a tal tipo de vida, o mais velho já respira essa profissão escusa, e se adaptou quase que perfeitamente à moral, aos costumes e às festas de enganadores profissionais. No entanto, como outras figuras do meio acabam por mostrar, essa vivência é insuficiente, repleta de vazios mesmo no quesito financeiro. Até mesmo o status acaba por incomodar Augusto, que ainda quer mais, quer se igualar aos tantos outros que se encontram em esfuziante riqueza e paz. É o vácuo do dinheiro que mexe essas sensações, e é a própria tendência à bondade que faz do protagonista um homem pouco propenso a alcançar o sucesso máximo como trapaceiro.

Apesar de ser parte da proposta, isso é indicado de forma exagerada pelo arco dramático de Picasso. Os paralelos que o roteiro traça são muitas vezes redundantes, e funcionariam melhor se afastados um pouco mais ou se fossem menos “redondos” e fáceis. Mesmo assim, o fato de o jovem sumir em dada parte da história é uma bela escolha, pois fecha algumas definições sociais e expande outras. A ideia de que uma pessoa não é capaz de mudar de vida vai ganhando força com os insucessos de Augusto, e ganha uma apoteose com a insuportável cena da ladeira de cascalhos.

O filme dialoga com o conceito de nível econômico. Os camponeses, em sua simplicidade, vêm a possibilidade de se tornarem ricos, mas isso é uma ilusão. A realidade (a burocracia, as regras e as normas) é clara, e não deixa se confirmar essa possibilidade. Semelhante é a hierarquia criada para os criminosos, em que tipos como o grã-fino e o arruaceiro desfilam. Fica a impressão de que a personalidade de cada um influi na carreira, e altruísmo é a única constante nos que abandonam tais costumes.

Partindo daí, fica implícita a noção de determinismo, a de que nem mesmo o arrependimento e a humanidade redimem uma vida que a sociedade reprova. E essa incapacidade de encontrar seu lugar, preocupação que lentamente se insinua em Augusto, é passada com melancolia acachapante por Crawford, que acerta os momentos de internalizar e externar os sentimentos. Fellini também sabe como tudo funciona, e prefere sair do suspense de crime para cair no drama puro. E, mesmo que a tragédia seja sobressaltada pelo roteiro, a direção do italiano só faz retratar as bases (muito reais) da história. Essa realidade já é trágica o bastante.
8,5

terça-feira, 7 de abril de 2009

A felicidade dá a cara a tapa

As protagonistas de Mike Leigh costumam soar agradáveis para as outras pessoas. Em Vera Drake, Vera era o arquétipo da velhinha simpática e afável. Em Segredos e Mentiras, Cynthia Rose tratava todos como “darling”. E, nesse Simplesmente Feliz, Leigh talvez vá ainda mais longe nessa tendência, com uma mulher que anda com sua arma de sorrisos engatilhada onde quer que vá. Pauline – Poppy – soa, desde o início, como uma pessoa que quer projetar sua alegria para os outros. A questão da personalidade, no entanto, não é simples assim, pois ela é um tipo de pessoa pouco usual, e soa deslocada em virtude dessa posição sempre “pra cima”. Não parece natural, trocando em miúdos.

Mas Leigh percebe isso de pronto, e logo no começo do filme mostra a protagonista e algumas amigas bêbadas e/ou drogadas, rindo copiosamente daquelas coisas que só bêbados e/ou drogados riem. Do pouco que já foi visto, Poppy já demonstra diferenças entre a condição alterada e a natural – algo reforçado pela cena seguinte, que a coloca de volta ao mundo sóbrio. Aquela é a personagem em seu dia-a-dia, e, ao longo da narrativa, fica claro que a mulher tem as mesmas nuances que qualquer um.

Confiando no trunfo axiomático de Sally Hawkins, Leigh permite que, em conversas e encontros sociais, Poppy demonstre sutilíssimas diferenças de tratamento, soando um pouco mais solta e escancarada com alguns colegas, e mais contida quando a companhia muda – tudo isso, no entanto, com naturalidade que denota inconsciência em relação a tais mudanças. Enquanto confecciona uma personagem cuja heterodoxa felicidade chama a atenção, Hawkins se volta para esses detalhes sutis, entregando uma personagem cheia de vida e complexidade. Notável, por exemplo, como a imagem de alegria é confundida com irresponsabilidade, ao que várias cenas vão derrubando esse erro: por mais lúdicas que sejam suas aulas, ela tem controle profissional sobre os alunos, como a subtrama do garoto violento destaca; embora comece caricaturizando a professora de flamenco, em pouco tempo ela sabe os passos melhor que qualquer uma da classe; e, mais ainda, seu linguajar é entoado com uma voz fina, infantilizada, mas as pequenas pérolas que solta traem qualquer tipo de ingenuidade que queira ser atribuída à sua personalidade (“No, not one sausage”).

Mais louvável ainda, o roteiro não tenta “explicar” o que levou Poppy a ter uma visão tão positiva da vida, implicando que esse sempre foi seu jeito. Não é algo definido, como a cena do mendigo, em que ela realmente compreende o comportamento e as não-revelações do morador de rua, deixa claro: ela pode ser assim desde sempre, ou pode ter mudado o jeito de encarar as coisas em algum ponto da vida. A incerteza é o que torna tudo mais fascinante. Pode haver uma resposta ou não, e esse é o tipo de vagueza que torna a busca pelo passado fútil – uma grande demonstração de habilidade por parte de Leigh.

No entanto, despido para uma linha narrativa central, o filme é sobre a relação de Poppy e Scott. As aulas de direção, filmadas por uma câmera “escondida” que granula a imagem para dar uma qualidade documental, ausente no resto do filme, são momentos em que a personagem de Hawkins ganha novas dimensões. Essa estética de documentário parece irônica, pois não estamos diante de um encontro com a vida real (tampouco Scott vive nela), como fica implícito – Scott é apenas como a protagonista se encontra com seu oposto. Ela já nos é familiar, mas é tão repentina na vida de Scott quanto ele o é para ela e para o espectador, uma chocante presença de rispidez num filme realmente alegre – uma reação que Leigh constrói de forma a causar sincero estranhamento, numa interessante visão do personagem.

E o engrandecimento se dá graças aos efeitos que o instrutor causa em Pauline, que vai se tornando mais sisuda ao longo do tempo, por ver que não consegue dialogar com o homem vestindo sua personalidade real, que, a esse ponto, já é indissociável da alegre mulher. Marsan, que evita os olhos da aluna a todo custo, consegue construir emoção no desagradável Scott, justificando a pena que Poppy sente dele e tornando-o humano mesmo quando, aparentemente, reage mal ao que ela diz a ele. “Aparentemente” pois não se pode negar outros tipos de visão sobre a postura do personagem, mesmo que se reaja a ele como a uma pessoa de “verdade” – e isso só torna a obra ainda mais genial.

Por isso, talvez, a cena do filme seja aquela em que ela, após uma aula no mínimo tensa, vê um cachorro e seu dono passando a seu lado, e solta um “Olá, cãozinho”. É o primeiro momento em que ela admite, mesmo que inconscientemente, que as relações interpessoais são consideravelmente penosas, a ponto de achar um cão uma companhia mais promissora. Mas longe de ser pessimista, o filme não se abala pela presença pesarosa de uma pessoa estranha como Scott, e não perde o eixo de estranheza positiva produzido para Poppy. Tem dias em que cachorros são as melhores opções de companhia, mas Poppy é sempre uma boa escolha. É só ir ao cinema.

9,5

Através de um espelho esfumaçado

Fazer de um filme um símbolo não é fácil. Quando esse símbolo precisa retratar uma pluralidade de qualquer tipo, torna-se ainda mais difícil – não que não haja pluralidade em muitos assuntos, mas O Visitante parte dela para tecer sua bandeira ideológica. A intenção era mostrar New York como a gigantesca metrópole que é, mas uma metrópole povoada de culturas, etnias e outras bagagens de nacionalidades distintas. A questão é: ela está mesmo povoada de outros tipos de pessoas?

Em vários momentos, o protagonista Walter se encontra em “contato” com elementos estrangeiros: a culinária chinesa que come na janta, a música italiana que ouve, o instrumento japonês que é tocado no metrô, e a companhia diária de uma senegalense e um sírio. E, mesmo no último caso, ele não vivencia ou aprende muito da etnia de cada um, optando por se relacionar com ambos através da boa e velha relação humana, a pura e simples, destituída de cultura ou preconceitos. E isso faz sentido especialmente pela natureza fechada de Walter, e pela estranheza de encontrá-los vivendo em seu apartamento – não haveria um costume étnico ou regional possível de o impressionar além desse choque.

A mulher que compra a pulseira de Zainab, por outro lado, tem o comportamento que muitos têm quando dão de cara com elementos de outro tipo de civilização. Embora simpática, tanto no filme quanto aparentaria numa situação real, fica claro que a aproximação é nula. Ela continua a 8000 quilômetros de qualquer tipo de familiaridade com Zainab ou com a cultura que está, sem bagagem alguma, comprando. O tema da imigração ilegal é muito pertinente, pois trata do assunto da recepção estrangeira tão bem quanto a cena citada.

A visão de New York como um lugar de multiplicidade demográfica é factual, mas a relação do sistema Norte-americano com esses variados tipos de pessoas é abordado sem ilusões aqui: são bem-vindas as bijuterias de Zainab, o som de Tarek, a comida dos chineses, a música dos japoneses apenas porque isso dá a exata imagem que iniciou o parágrafo. É no afã de soar democrática e global que NY aceita essas lascas inúteis de cultura, é nessas condições que o portador de tal “cultura” (lê-se, numa tradução honesta: “coisas exóticas”) tem o green card não-oficial, uma máscara que o Estado torna disponível por interesses próprios. No entanto, toda ilusão é destruída, e, com ela, o pacto, em que o indivíduo mais fraco é punido por usar a máscara.

Num entrelaçamento sólido, a presença do protagonista é usada de forma brilhante: é seu reconhecimento humano que cria laços com os muçulmanos, tanto que a ética e os valores étnicos só entram no conjunto de preocupações de Walter quando Tarek, o amigo, está em apuros por causa deles. Além disso, o personagem do excepcional Richard Jenkins aprende, por iniciativa própria, a tocar o djembê (tambor) do amigo – algo que faz sem interesse pelo lado exótico, e sim por sincera vontade. A mensagem é clara: os americanos se apoderam do que os estrangeiros trazem, e Walter o faz com intensidade bem maior que o normal, mas isso não cria um encontro de culturas, e sim uma disparidade esquisita, colada pelo afeto humano – vide a cena final.

Com tamanha complexidade no tema das etnias e conceitos de nação, uma determinada escolha impede que o filme vá ainda mais longe. A questão da distância entre as culturas que habitam a Maçã ganha contornos fortes com Zainab, e nesse momento, abre-se um caminho dramatúrgico riquíssimo, em que a relação com Walter e a discussão ganhariam profundidade muito bem-vinda, mas o roteiro escolhe sabotar essa possibilidade em prol da grande virada do filme. Por conseguinte, Walter e Zainab se distanciam, num grande desperdício de temas e personagens. E apesar disso, e de alguns momentos que querem explicar e expor mais do que é necessário e apropriado, a dramaturgia é beneficiada por dois elementos bem azeitados do filme.

Enquanto o roteiro consegue sair do lugar-comum de frases de efeito e impactos gratuitos, com as palavras desajeitadas do protagonista e até mesmo uma bela cena com a mãe de Tarek e um advogado, a montagem é sábia ao focar seus personagens nos momentos certos, inclusive cortando reações de Walter quando elas não interessam à cena – pois não é raro que o ator principal sempre termine uma cena, seja por ter a última fala, ou porque sua reação é pressuposta importante já de antemão. E não citar a força da cena do aeroporto, coerente com a brevidade dos encontros internacionais entre pessoas, seria um crime.

Sobriedade também sobra para a trilha belíssima de Jan A.P. Kaczmarek, que é sábia por incluir o djembê apenas nos momentos certos, evitando, inclusive, que o alegre instrumento entre nos momentos mais melancólicos – a base é o piano, que ganha força como escolha musical por ecoar narrativamente. O olho estético de McCarthy também faz maravilhas, encontrando o equilíbrio nos planos e conseguindo capturar a “pluralidade” novaiorquina com o mesmo tom cético de seu roteiro. Pois a pergunta que fica (especialmente pelo fato de o final ser tematicamente aberto) é clara: os Norte-americanos merecem essa fachada multicultural, mesmo que composta de fragmentos ilusórios? Talvez apenas os que podem ser chamados de humanos, como Walter.

8,0