terça-feira, 30 de dezembro de 2008

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Fargo:
Os Coen têm fixação em oferecer perguntas e deixar as respostas para o espectador. E normalmente, são perguntas sem resposta. Os filhos-da-puta estão basicamente jogando no nosso colo questões essenciais sobre a sociedade atual, e dando as costas. Querem eles só criar, a partir da raiva, a obsessão por encontrar a solução, ou eles simplesmente estão dizendo "Não, isso não tem resposta"? Eu não chamaria de acomodadoo partidário da segunda opinião. Os Coen mesmo parecem bastante categóricos ao criar situações desorientadoras e um roteiro mais cheio de lacunas que DNA de T-Rex. Motivações, decisões, pensamentos, reflexões, tudo é atropelado a favor de uma narrativa baseada em um caso real, demonstrando como os roteiristas pouco se importavam com a fluidez clássica do roteiro.

Dentro desse microcosmos de caos, no entanto, tudo faz sentido, com a tagline "Você não vai acreditar" se fazendo valer a todo momento, mesmo quando um acontecimento é previsível. O absurdo da trama causa um estranhamento que Paul Thomas Anderson usaria mais tarde, com tanta propriedade quanto, e o resultado da empreitada dos Coen não poderia ser mais inversa em tom, já que o efeito de "Fargo" é riso nervoso e deslumbramento aparvalhado. Eles não estão atrás de uma explicação para os fatos, eles querem se apropriar dos fatos narrativamente, com uma pegada nada esclarecedora e um clima de nonsense que pode parecer fácil, mas diz muito. O elenco entende isso perfeitamente, desde o confuso Macy e sua parva esposa, passando por Stormare e Presnell, frios cada um de seu modo, até Buscemi, que se conhecesse o personagem de Macy melhor iria se bastante.

Mas o show é de McDormand, perfeita em todas as suas cenas, mesmo em uma que pede seriedade e tensão. No geral, ela vê tudo com despreocupação, e poucas coisas podem fechar sua cara - a comparação com as atendentes de hotel é brilhante - a não ser... E essa fofura não mascara absolutamente nada, mesmo quando cai no humor negro. Meu mote se faz valer: "Só os Coen, mesmo".
*****

O Eclipse:
Vittoria é incomunicável. Ela parece dizer muito para si mesma, discutir consigo, fazer decisões, criar outros alguéns internos para ver a vida de todos os jeitos possíveis. Ela não precisa de outros para ser ela mesma. Os outros na verdade ferem seu jeito de ser, só no amor, nessa cegueira febril que nos acomete vez ou outra, em períodos longos ou curtos, que ela realmente consegue ser ela mesma e não sofrer: ela se torna outra. "O Eclipse" é sobre o hiato pós-amor, o momento em que Vittoria passa a viver com sua antiga "eu" de novo - ou ela não é mais a mesma?

Nesse meio tempo, ela se encontra silenciosa, ocasionalmente inalcançável, com amizades calcadas em atos, muito mais que em palavras - seja com uma vizinha semi-conhecida, seja com o cachorro dela. O advento de Piero é providencial, ele também vive numa cápsula que não permite comunicação externa. A Bolsa é uma metáfora primorosa, não só comparando sua gritaria com os silêncios do filme (Antonioni claramente mostra como gritos e até palavras pouco se fazem entender, dando uma belíssima alfinetada nos possíveis críticos) e mostrando como aquela euforia se torna profundamente entediante (quem tem medo de Antonioni?), como também mostrando que até mesmo naquele caos, os presentes se compreendem - o que se contrapõe às dúvidas constantes de Vittoria.

O roteiro também se esforça para mostrar a complicação que é a venda de ações, títulos e etc., pois tudo isso se torna trivial e básico (é dinheiro pelo dinheiro) quando comparado aos sentimentos humanos - a protagonista às vezes não sabe o que sente, tampouco o que quer. Os diálogos são às vezes sutis ("Mas fui eu quem chegou antes", a declaração mais linda que já vi), às vezes sintéticos ("Ela não é uma pessoa que desenha florzinhas") e sempre inteligentíssimos em sua profunda análise dos sentimentos, personificados com complexidade pelos mínimos gestos de Vitti, assombrosa - pra não dizer estarrecedoramente linda. Um filme para viver de longe, caso contrário, cai-se no vazio dele. *****

A Companhia dos Lobos:
Talvez uma das fábulas mais curiosas que já vi, o segundo filme de Neil Jordan resgata aquela soturnidade tipicamente fabulesca (antes da amenização popular, claro) e carrega nas tintas macabras para contar a velha história do Lobo Mau, ganhando força por não amenizar uma história claramente violenta. O que Jordan faz é criar um ótimo clima macabro, recheado de cenas bizarras e histórias grotescas, e poetizar o que era usado, à época, como contos para aterrorizar crianças e dá-las um encaminhamento ético. Assim, a cabeça de gesso se espatifando e a que cai no leite criam cenas de violência latente, cujas elipses (que criam a poesia em tais brutalidades), em vez de amenizar, dão outra interpretação ao que já se firmou como ato violento. A sexualidade latente também está presente, como na língua obscena, nos vários corpos nus, no conceito de meios-termos (adulto x criança, lobo x homem) e nas seqüências de ataques, filmadas em câmera lenta, para denotar violação, usurpação da infância e da espécie plena, de forma aterrorizante e, não por isso, evitando passar uma sensação sublime e bela. Jordan parece corroborar essa indefinição, e disso nasce algo novo, e seu filme por conseguinte. ****

O Dia em que a Terra Parou:
Começando de forma documental, informacional (ecos da paranóia induzida por Welles em 38), o filme logo se desenrola em uma complexa análise da Humanidade da época - podendo, igualmente oportuna, ser aplicada para os dias de hoje. O filme sobrevive ao tempo graças à sua universalidade, mas, principalmente, por não facilitar a abordagem que adota. Pode parecer inocência dizer que o mundo é infantil e que as guerras são todas sem sentido, mas o roteiro se apropria dessa idéia e a subverte completamente, jogando na cara do espectador aquilo como uma verdade inegável. Temos uma necessidade de justificarmos, através de minúcias detalhistas, como é difícil a aliança entre os humanos, lavando as mãos para nossos próprios conflitos - gerados, total e absolutamente, por imbecilidades como território, religião e diferenças culturais. Klaatu não simplifica, ele deixa claro que a compreensão entre todos não é fácil, mas a diferença é a resolução de seu povo, em criar uma paz forçada, quase ditatorial - afinal, nós vivemos num regime de conflitos ditatoriais, ao ponto em que são apenas notícias na televisão, algo corriqueiro, dois mortos, dez, mil, tudo bem, é a forma que escolhemos para viver e dá para lidar com isso.

O povo de Klaatu, não, eles escolheram se acostumar a algo mais "humano" (eles o são mais que nós), e admito que chegou a rolar uma lágrima durante o discurso final, sem dúvida um dos mais lindos e significativos do Cinema - e o modo como o filme deixa a ameaça e o questionamento latente ao final é não menos que ousado. O visitante segue nosso sistema de forma sublime, apelando antes à política (uma casta manipulada ao extremo), ignorando a instituição militar (que ignora o conhecimento) e depois indo à Ciência, apelando para o lado intelectual em clara chantagem - também uma crítica à raça humana, uma dentre inúmeras. Numa reação violenta à petulância de todos nós, esse clássico respirará através dos séculos, e, em nossa ignorância, será taxado de "tolo". *****


O Ataque dos Vermes Malditos 2:

A continuação da baboseira hiper divertida de 1990 é outra baboseira divertida, que pode não ser agraciada pela total falta de pretensão do original, mas consegue arrancar umas boas risadas desde o começo, com uma mistificação oportuna do sucesso e da fama que o filme anterior alcançou. O que sobrou aqui é a intenção, pois os realizadores visivelmente tentaram tornar a série mais engraçada, e quando isso transparece, uma parte da mágica se esvai. Por sorte, a produção, em hilário contraste com as criaturas pré-cambrianas que os heróis enfrentam, é tão esperta que é estúpida, com cena após cena de absurdos que fazem sentido e nenhum sentido ao mesmo tempo. A galeria de personagens também só ganha com Fred Ward, totalmente à vontade em um papel que muitos teriam tornado chato, Michael Gross, um belicista demente que consegue sair dos clichês mais irritantes, e Helen Shaver, que protagoniza com Ward um daqueles “romances-sem-razão-de-ser”, com direito a comentários acerca da própria esquisitice desses romances. Chris Gartin, por outro lado, representa a fatia do filme que tenta ser engraçada, mas ele se revela espirituoso de vez em quando. Enquanto acredita nos monstros, em sua mitologia besta e lhe dá corda sem se levar a sério demais, o filme acerta. O tropeço está em dar a deixa para a péssima terceira parte, que se preocupa além da conta em fazer rir. ***


E.T. – O Extraterrestre:

Para elogiar o filme, tenho que criticar o mesmo filme, praticamente, e, de forma direta, seu diretor. O que Spielberg fez com E.T. é um crime hediondo, é um atentado à grande experiência cinematográfica que ele mesmo criou. E não estou falando só das armas que viraram walkie-talkies, isso é só a posição da gota de sangue no assassinato. Para mim, cenas bonitinhas que ficaram de fora do filme original não são uma chance desperdiçada, são o retrato da produção de um filme, algo que prezo muito. Adicionar cenas descartadas por ineficiência de efeitos é negar o retrato cinematográfico de uma época do Cinema, é querer tornar mais "acessível" algo que é, pelo bem e pelo mal, anacrônico. O que Spielberg fez para mim foi criar distância (o mesmo que Lucas fez com sua trilogia), foi negar o que havia sido feito para disfarçar algo que todo filme tem: limitações.

O CGI adicionado não engrandece o filme em nada, dilui sua iconicidade e atrai atenção para si mesmo, criando um anacronismo que passa longe do charme do filme de 82: é um anacronismo feio, que parece desdenhar toda uma época. O que é uma pena, pois os efeitos do filme são fantásticos, com o E.T. absolutamente convincente sem ser humano - a expressividade maior que os efeitos em computação adicionaram ao rosto do bichinho só me faz lamentar. O que Spielberg achava da marcante capacidade de emocionar que seu filme teve na vida de muita gente? Achou que CGI tornaria melhor? O extraterrestre emocionou como era, com seu rosto enrugado e plácido, seus olhos falsamente tolos e cansados, e esse boneno digital serelepe e arteiro não serve de nada, além de escancarar algo que estava belíssimo nas sutilezas.

É muito bom ver um filme que tem um ritmo todo seu, com um uso de silêncios e pausas que o cinema comercial de hoje em dia simplesmente não consegue aceitar. Os diálogos são raros, e dizem muito com pouco, e não me refiro só ao vocabulário limitado do personagem-título – vocabulário, por sinal, causa estranhamento, pois nenhum filme-de-estúdio atual botaria “penis-breath” na boca de um personagem, que dirá de uma criança. Não faltam, por outro lado, qualidades atemporais, como Henry Thomas, em uma das mais tocantes interpretações mirins que já vi – tão surpreendente que fica fácil acreditar que ele viveu uma amizade intergalática tão profunda. As cenas em que ele e E.T. dividem sentimentos são todas lindas (minha preferida é a dos sapos), e o próprio conceito é desenvolvido de forma cadenciada, sutil e sem a necessidade de explicação instantânea – outro belo anacronismo cinematográfico. Coroado por efeitos sonoros inesquecíveis, cheios de narrativa, e mais uma despudoradamente fascinante trilha de John Williams, esse filme foi uma experiência emocional que tornou-o um sucesso à sua época, e se tornou uma experiência de saudosismo (mesmo para os não nascidos nos anos 80) na linha temporal do Cinema. Isso é, claro, se ignorarmos que seu diretor se tornou covarde e vendido, e fez um esforço tremento para destruir sua obra em detrimento de um senso de moral e uma política de fazer filmes que constrangem cada vez mais seus fãs de outrora. ****¹/²

O Quarto do Pânico:
Se Fincher tivesse continuado na franquia Alien, depois do regular Alien³, teria saído O Quarto do Pânico. Filme totalmente baseado na direção e no clima que ela tenta desenvolver, o thriller serve para muito pouca coisa, além de mostrar o talento de Fincher. O problema é que o talento dele soa absurdamente deslocado com o péssimo roteiro de Koepp, é como coroar de flores perfumadas uma pilha de fezes recentes. Os bandidos, uma trinca de clichês ambulantes e mal-utilizados, só não são piores graças às boas atuações de Whitaker, Leto e Yoakam, que aceitam seus personagens mal escritos e retratam suas personalidades de forma eficiente. Foster, por outro lado, já está menos acomodada, tenta sempre dar vida a seu personagem, e consegue, de vez em quando, com pequenas nuances que mostram uma certa elaboração na performance - mesmo que isso não a torne incrivelmente interessante. Como único elemento digno de menção, me agradou muito que ela não se entregue pura e simplesmente à batida fórmula da Mãe-Leoa.

Didático e cafona, Koepp chega ao cúmulo de fazer Foster levantar o celular, depois de ver que não funciona, e murmurar "sinal, sinal, sinal", apenas para garantir que entendemos que ela está procurando sinal - parece que se ela simplesmente jogasse o celular de lado sem dizer nada, o público não acreditaria que não estava funcionando. Burnham é outro que sofre, não apenas pela escolha oportuna do roteiro de transformá-lo numa figura moralmente mais complexa (só moralmente), mas também pela insistência com que Koepp dispara pequenos detalhes que justifiquem seu posicionamento e sua existência enquanto Sr. Gente Boa - cheguei a ficar constrangido na cena em que ele aparece de braços abertos, como um sofredor. Num tiro no pé do roteirista, Burnham define Raoul ironicamente como "Joe Pesci", como se isso não o tornasse ainda mais derivativo.

O que mais demonstra preocupação com a eficiência profissional é Fincher, que entrou no filme ou por falta do que fazer ou por orgulho, já que o filme se mostra ótimo para provar o talento do cineasta. Os travellings (especialmente o que mostra a chegada dos bandidos) conseguem um notável equilíbrio entre elegância e tensão, dando inclusive uma fluidez geográfica para a decupagem e ajudando a boa edição – seria difícil montar mal um filme que define seu espaço e seu tempo tão bem, embora eu tenha ressalvas para com certos cortes/fade-outs medonhos. O clima de tensão é infelizmente sabotado pelos conflitos entre os ladrões, pois fica na cara que aquela desorganização só pode levar para o final que suspeitávamos desde o começo – e é curioso que alguns personagens digam “você sabe como isso vai terminar”, cada um com uma conclusão em mente, enquanto nós, espectadores, somos agraciados com a sina de sempre saber tudo. No entanto, a cena do celular é sublime e agoniante, e, nos melhores momentos, o roteiro consegue criar viradas bacaninhas, alternando catarse e frustração e dando energia ao filme. Uma pena que, tirando Foster e Fincher, animadíssimo com as possibilidades estéticas da produção, todos os envolvidos estavam com uma preguiça imensa, inclusive Howard Shore, que cria uma trilha mediana, cansada. Todos sabiam que não havia nada de interessante ali, então resignaram-se e fizeram seu filme regular. Fincher se esbaldou, e se não elevou o filme para uma aula de suspense, pode culpar Koepp e continuar no caminho dos corretos. **¹/²

Spartacus:
Conseguindo a façanha de me agradar mais ainda que Ben-hur, o épico de Kubrick é mais ou menos idêntico em escala, mas totalmente diverso em escopo. Enquanto o primeiro é um espetáculo em todos os sentidos, dos meios aos fins, esse usa suas proporções colossais como veículo para contar sua magnânima história. Usando a política de forma passageira (o filme conta História social, e é só no tocante a esta que o lado político aflora), o roteiro permite que os diálogos carreguem todas as significações da época, seja através do senso de humor peculiar, seja pelos sutis comentários acerca daquela sociedade, que não é esmiuçada visualmente, e sim ideologicamente, e sempre nas entrelinhas (o tratamento dado à homossexualidade é perfeito). Kubrick dirige com força, e seus travellings, planos-seqüência e movimentos de câmera soam como a única maneira digna de se filmar cada uma das cenas. A lógica das batalhas é subvertida, com figurantes passando na frente dos lutadores principais e atrapalhando a visão destes, uma escolha belíssima e coerente.

A trilha sonora dança através das cenas, numa elegância que não priva de força as marcantes melodias - ainda melhor, na única cena com música leve filmada em Roma, ela existe de forma artificial, devido a músicos colocados em cena. Douglas empreende um tour de force como o protagonista, retratando com sobriedade as intensas jornadas existenciais de Spartacus. Os coadjuvantes, espetaculares, do apaixonante Curtis ao perfeito Laughton, da poderosa Simmons ao inesquecível Olivier e ao arrasador Ustinov, todos ganham seu lugar, pois Kubrick valoriza o trabalho de cada um. Ao final, um sabor amargo que poucas tragédias alcançam: fica claro que milhares de mortes foram apenas capazes de dar à luz um único filho livre naquela população de escravos. Spartacus é um símbolo da Humanidade e de como o que parece corriqueiro hoje em dia já foi motivo de lutas das mais gigantescas. *****

O Lobisomem (1941):
O fato de ir além da história Bem x Mal, misturando certo, errado, bonito, feio, são e louco no caldo e misturando pra borrar maniqueísmos fáceis, me agradou bastante, ainda mais que a ótima maquiagem e a excelente ambientação. Chaney Jr. está espetacular (cena-do-ator preferida: quando ele ignora uma conversa inteira para olhar fixamente um dos presentes), sai bastante dos moldes do galã com simpatia e dramaticidade certeiros. Ankers, como uma dama-em-perigo cheia de significado, é precisa, e o roteiro a ajuda com um papel muito bem explorado. Rains, com inexplicáveis 50 anos (eu chutaria uma década a menos), é a figura plena da nobreza social, intelectual e de espírito, o que só torna sua cena final mais especial. Embora passe numa cuspida, o filme deixa grandes lembranças e cresce a cada revisitada mental. ****¹/²


Furyo - Em Nome da Honra:

Filme esquisito. Tem uma aborgadem peculiar de boa parte de seus temas (amor, honra, obsessão, choque de culturas), e acaba soando raso em boa parte do tempo. Os problemas de ritmo se empilham um atrás do outro; não chegam a ser tantos assim, mas são um bocado sérios. Oshima não sabia se preferia as entrelinhas ou o contexto principal, então temos momentos de nada, com o diretor procurando nuances onde não há nenhuma digna de nota, alternados com momentos de explicação em demasia, com Yonoi deixando sempre claro (para o espectador e para todos os personagens em volta) que está obcecado por Celliers.

Sakamoto, por sinal, está pavoroso além da conta - vale dizer que sua performance seria perfeita se fosse Brad Pitt na cena do carro de Queime Depois de Ler. Bowie não chega a constranger, mas tem pouco a fazer, já que seus momentos de reflexão são afogados pelos flashbacks (que contam ainda com narração em off - Oshima queria causar, fato), e não oferece nuances ao personagem quando tem a oportunidade. Takeshi está bem, e conseguiria emocionar com a mesma performance em outro filme, mas é Conti que se sobressai, num esforço visível e louvável, muito discrepante com o resto do elenco.

Embora o diretor filme bem, use uma fotografia interessante e acerte o tom de algumas poucas cenas (comentário válido para a esdrúxula, ocasionalmente eficaz trilha sonora de Sakamoto), a sensação predominante é a de que alguns temas poderiam ser mais bem desenvolvidos, e outros, desenvolvidos. É bom o retrato do encontro de culturas totalmente diferentes, o filme todo tem esse conceito em mente. Uma pena que outras coisas interessantes fiquem enterradas até que Oshima julgue que é hora de desenterrá-las. **

A Mundana:
Um dos diretores que mais estou gostando de descobrir: Wilder. Minha comédia preferida é dele (Some Like It Hot), e A Foreign Affair é igualmente um ótimo exemplar do gênero. Não digo que é tão bom quanto, mas é mais demonstração da habilidade do diretor em criar situações cômicas. Quando usa a guerra para fazer graça, Wilder não dá lugar para sutilezas ("Nós tivemos permissão para pousar na Normandia?"); uma ótima escolha, ressaltada pela fotografia, atenta às ruínas nas quais a cidade se tornou. Por outro lado, é poderosa a sutileza de momentos como quando Pringle dirige por entre os escombros, sorridente com um pensamento que só se saberá um minuto mais tarde qual é. A beleza é representada pela cena em que Frost foge de Prigle puxando gavetas como obstáculos, ao que ela a prende da mesma forma.

O elenco é um esplendor. Jean Arthur raramente passa do ponto na caricatura (o sobrenome Frost já deixa clara a opção pelo exagero), conseguindo passar por emoções fulminantes sem fraquejar. O garboso Lund também é bem explorado, sem ficar só nas facetas mais fáceis e práticas. Dietrich, por outro lado, rouba a cena, numa precisa caracterização da alemã caleijada, voluptuosa e blasè, contrastando com Frost de maneira exemplar e arrasando nos excelentes números musicais. Além das situações divertidíssimas, o roteiro ainda acerta no ritmo, que, embora vez ou outra soe apressado, mantém um fluxo de boas idéias constante - tanto que os elementos menos inspirados, raríssimos, pouco diminuem o filme. O clima de cinismo e segredos tem como palco perfeito aquela Berlim arrasada, cheia de cinismo e segredos por si só. E filmar sem ter que criar um mísero prédio destruído sequer é um daqueles bônus em que o brilhantismo de Wilder se mostra certeiro ao caracterizar seu tempo. ****

Tom Horn:
Doei essa tarde a McQueen, que eu infelizmente nunca tinha visto em filme algum (só no começo de Cincinatti Kid), e saí embasbacado. A coisa já começa forte com a fotografia espetacular, que consegue a façanha de se superar a cada momento, pegando vistas naturais ou jogando sombras poderosas nos cenários para nos colocar no lugar do protagonista. A trilha sonora também é poderosa durante o filme inteiro, se impondo sem interferir na igualmente (ou ainda mais) impetuosa narrativa. A história de Horn é contada sem meios-tons, explorando a fundo o personagem, que, afinal, não é complexo em seu estilo de vida. A beleza e pungência do retrato do homem é o que torna o filme marcante, através de diálogos singelos ("Não feche a cela antes de eu chegar na janela"), e outros filho-da-puta-mente ríspidos, e quando essas duas facetas se encontram, como quando ele comenta o Velho Oeste com Glendolene ou quando ele diz "Segure as pontas, Sam, que eu estou segurando as minhas", a fita alcança sua voltagem mais avassaladora. O final, claro, é de deixar sem palavras.

Adotando um tom frio e seco, o diretor Wiard acerta no uso de violência, sempre surpreendente (a cena do celeiro é brutal), e mesmo sem sangue, consegue criar uma série de mortes que impressiona pela rispidez - algo que a edição, insensível, faz questão de ressaltar. No entanto, é McQueen que junta o que seriam apenas pontas soltas. Sem sua excelente performance, seria difícil crer num cowboy veterano de guerra cujas cruéis e gélidas convicções têm espaço em meio a um sublime amor pela liberdade, que, num chapa bruto como ele, tem um preço colossal. É ao entender isso que o ator consegue nos convencer (algo essencial, já que convence também os moradores da região) que essa dicotomia habita em Horn, ao mesmo tempo em que retrata com intensidade ambos os ideais de sua vida. Contando ainda com um desenho de som de cair o queixo, esse western moderno cativa e surpreende através de caminhos tortuosos. *****