quinta-feira, 14 de junho de 2007

O Cheiro do Ralo

Se “Nina” já saía bastante da rotina do cinema mainstream brazuca, o novo trabalho de Heitor Dahlia, “O Cheiro do Ralo”, é ainda mais separatista e distinto. Continuam os transeuntes bizarros, as ambientações peculiares e os protagonistas complexos e um tanto psicóticos da estréia do diretor, porém, em seu segundo longa, ele carimba com mais força ainda o selo “Alternativo”. Esse filme não é para todos os gostos, e, enquanto “Nina” ainda é atraente pelo forte e belo surrealismo, aqui o mau gosto predomina: os diálogos são repreensíveis, as situações são indigestas e o humor negro é o único “alívio”.

A história é baseada no livro homônimo de Lourenço Mutarelli, contando a vida de Lourenço (Selton Mello), um homem solitário que trabalha comprando artefatos antigos. Suas únicas companhias constantes são o segurança de sua loja (papel do autor Mutarelli) e sua secretária, já que ele desistiu de casar com sua noiva e ela saiu do apartamento onde moravam juntos. Um dia, num boteco, ele dá de cara com uma garçonete (a promissora Paula Braun) de nome impronunciável, cuja primeira qualidade que ele nota é a bunda. Daí nasce uma obsessão pelos glúteos da garota, similar à obsessão que ele tem pelo fétido ralo do banheiro de sua loja. Tudo o que ele quer na vida é a bunda, e enquanto isso, le esbarra em personagens cada vez mais bizarros que aparecem para vender seus pertences.

Em “O Cheiro do Ralo”, é interessante notar que as comparações poéticas e/ou metafóricas estão totalmente destacadas da narrativa. O ralo é citado como fonte de energia e como um portal para o inferno, assim como o olho de vidro, objeto que fascina Lourenço a ponto de fazê-lo pagar alta quantia para possui-lo, é tanto visto como um objeto místico, uma maldição e uma parte do “pai Frankenstein”. No entanto, o ralo nada mais é que um sistema de tubos entalado com dejetos humanos, e o olho nada mais é que uma coisa, e o filme deixa isso claro em diversos momentos. Os devaneios do protagonista são só dele, e tais artefatos apenas servem para expandir sua personalidade para além de sua própria existência.

Essa forte personalidade de Lourenço é o que há de mais interessante na história. A frieza crua com que ele trata os desesperados que lhe aparecem para vender traquitanas é essencial, visto que várias daquelas pessoas estão em situações precárias e dão ênfase à necessidade que estão passando. Por outro lado, ele não fica contente usando apenas de desdém: suas tiradas ainda estão impregnadas de sarcasmo, e ele dispara tais farpas como que para realmente ofender os clientes.

A razão para tal hostilidade é dupla: por um lado, ele realmente percebe a inferioridade daquelas pessoas, a maioria com visível aparência passiva e encolhida. E assim ele faz, diminuindo a pessoa em frases curtas e ríspidas. Talvez sinta ódio de todos os que resolvem se desfazer de artefatos valiosos, já que objetos são para ele mais importantes que seres humanos – excetuando-se a bunda da garçonete. Portanto, quando oferecem algo que o cativa, caso do olho e da perna mecânica, ele até abre sua calculada mão-de-vaca, por acreditar na importância que o objeto terá para ele.

Por outro lado, o comportamento agressivo de Lourenço também pode ser interpretado como um endurecimento, uma transição de pessoa solidária para um ser atipicamente frio devido às circunstâncias da vida. Tendo de se acostumar com o destrato de dezenas de pessoas, ele acabou se privando do contato humano, tornando-se desajeitado quando precisa ser sociável. E no único momento em que ele desabafa sobre seus sentimentos, ele também revela o quão desastrado é nas relações interpessoais – uma cena, no mínimo, hilária.

Obviamente, aqui não há o tipo de piada que se vê em comédias adolescentes de Hollywood, nem em episódios de A Grande Família. Aqui o humor negro conduz a narrativa, não deixando espaço para tiradas leves ou engraçadinhas. Embora honesta em sua exclusividade, a escolha de não provocar o riso fácil é difícil de assimilar: para quem não está familiarizado com esse tipo de piada, o filme não terá graça, e pode passar como uma produção dramática. A fita acaba não saindo desse limiar, portanto, tanto o humor quanto o drama são prejudicados em certos momentos.

Mas isso não compromete o filme totalmente, já que vários momentos engraçados se salvam, e as qualidades estão presentes em todos as cenas. A direção de arte é magnífica, verossímil ao tratar a realidade dos personagens, e a fotografia peculiar aumenta a sensação de estar assistindo a uma produção distinta. Já Selton Mello apresenta seu melhor papel cinematográfico até hoje, encarnando Lourenço sem meios-tons, abusando das manias bizarras e criando um ar de indiferença constante para o frio protagonista. A cena em que ele encontra um encanador igualmente desbocado é uma aula de timing cômico.

A atuação inconstante de Mello, combinada com a ousadia que inunda cada cena, fazem de “O Cheiro do Ralo” uma peça obrigatória do recente cinema nacional. Pode ser difícil de assistir e de assimilar, mas uma segunda olhada talvez seja ainda mais gratificante que a primeira.

Nota: 8,0