quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

8

Macunaíma
Mesmo quando não é engraçado o bastante, a demência filmada de Joaquim Pedro de Andrade impressiona no quesito simples do absurdo grotesco. Adotando a galhofa sem trégua no filme todo, o filme enfia sexo, nudez, gore (!!!) e uma moral ímpar para transpor o herói brasileiro de Andrade. O resultado é um filho da puta mais folgado que aquele tio pançudo do interior, mais malandro que o avô que levanta a saia da cunhada e mais mulherengo que aquele primo mais velho que dá em cima até da tia. É quase hiper-realista: se as aventuras em que o herói se mete na selva são lendas indígenas exacerbadas ao máximo do bizarro, quando ele se torna branco de vez (para a sociedade aceitá-lo como malandrão, pois branco pode), ele se torna muito mais próximo de caricaturas que vemos no dia-a-dia mesmo, e é lindo que alguém entenda tão bem a alma brasileira sem criticar. É o filme brasileiro mais anti-hipócrita, e mais espetacular apesar de suas tosquices calculadas, que alguém podia ter feito sobre nós. Nota 9,5.

Gosto de Cereja (Ta'm e guilass)
A vida e a poesia estão em cheque nesse filme de Kiarostami, algo visível desde o começo, na qualidade restrita dos planos do diretor; mas só encaramos esse fato de forma definitiva no final, pois a conclusão da história é mostrada como um documentário. Se no começo vemos o banco vazio do carro do Sr. Badii, retratando sua busca, e se a câmera constantemente se põe no lugar dele, é apenas para mostrar como ele vê seu plano como algo poético - vide as panorâmicas, uma tentativa de marcar poeticamente aquela paisagem. Aquela absência no banco do carona é também a falta de algo, que não sabemos o que é, mas que essa poesia produzida teoricamente irá completar.

Ershadi faz maravilhas ao lidar com um personagem de passado trancafiado, indo além da amargura inabalável de suas expressões e criando uma história secreta para Badii - algo que Kiarostami visivelmente ressalta em sua sensível e firme direção. O roteiro também se preocupa em conferir verossimilhança ao protagonista, fazendo-o adaptar cada palavra de seu discurso dependendo do interlocutor. E, na simplicidade sincera de Bagheri (Abdolrahman Bagheri, que nem ator é), seu relato é emocionante, algo essencial para o filme. Acertando ainda na característica um tanto cacofônica e perturbada dos momentos reflexivos, Abbas constrói um relato absolutamente coerente e pessoalmente envolvente sobre esse personagem, que tenta se esconder atrás da poesia numa situação extrema. Ressalvas? A cena da fotografia me parece bastante desnecessária, soa artificial, como que uma rubrica supérflua daquela decisão do personagem.
Nota 9.

Mil Anos de Orações
A "double-feature" de Wayne Wang, cujo superior A Princesa de Nebraska está sendo exibido em todos os cinemas junto ao filme em questão, funciona bem como duas visões do conceito. As histórias sino-americanas abordam a diferença de culturas, línguas e costumes de modos diferentes. Em "Mil Anos", há bons usos desse conceito, mas, sendo a intenção final contar uma batida história de pai e filha com problemas mal-resolvidos, difícil se ater a essas pequenas qualidades. O que salta aos olhos mesmo é a atuação surpreendentemente simpática de Henry O (normalmente o patriarca chinês é mais austero, e a comparação com a mediana Feyhong Yu também cria uma sensação curiosa). Mesmo quando encurralado em situações clichês e/ou exageradas, ele consegue cativar. Não se pode dizer o mesmo da trilha insípida, do roteiro previsível (que ainda falha em pegar algumas boas partes e dar força ao todo) e da direção de Wang, francamente nula.
Nota 4,5.

A Noite
Um bom começo Antoniônico pra mim. Ouvi falar que esse filme é tido como chatíssimo, mas fui ver sem saber nada, e não desgrudei o olho da tela. Não tem como um filme de tal beleza estética ser considerado chato. Não existe uma composição sequer que não mereça os seus segundos de duração, tamanho é o apuro, às vezes sublime, às vezes pitoresco, das imagens que Michelangelo capta. O roteiro segue de forma vazia, estática o relacionamento do casal principal, e essa insipidez é um acerto que dialoga perfeitamente com o visual - assim como as traições. Na direção, o que me chamou a atenção foram os figurantes, pois é sempre notável como eles agem mais, falam mais, se divertem mais que os protagonistas. Se no começo isso causa um bom estranhamento, mais tarde se torna peça-chave para entender o relacionamento de Moreau (estonteante em sua amargura) e Mastroianni (equilibrando bem o lado macho galanteador com o de marido sem graça). Embora os minutos finais acabem explicando demais, a força da última cena causa uma sensação horrível.
Nota 9.

Queime Depois de Ler
Depois de um filme austeríssimo e profundo, os Coen mergulham de cabeça numa sátira histriônica, cheia de personagens idiotas, situações estapafúrdias e piadas xaropes. Mas acontece que é divertido à beça. Assumindo o jeitão retardado quase que desde o começo, o longa consegue, em pouco mais de hora e meia, criar uma torrente de absurdos que não dá trégua: quando parece que já aconteceu coisa imbecil o bastante, somos surpreendidos. Cortesia do roteiro dos irmãos, que estavam com a imaginação rolando solta e disposição para criar uma série de eventos mongolóides de quebrar a mandíbula.
Graças a um elenco homogeneamente espetacular, a fita consegue a credibilidade que uma comédia tão exagerada precisa.

Temos Clooney encarnado por Curly, Swinton mais víbora que qualquer anjo rebelde ou rainha vadia, McDormand louca para esticar aquelas rugas, Malkovich mais puto que o paulistano no metrô e Pitt incorporando de tudo um pouco, num papel que me lembrou Jack Sparrow em MUITOS aspectos - aquelas bocas abertas, os "shits" e os trejeitos duvidosos podem trazer ao astro uma nada convencional indicação ao Oscar. JK Simmons, defendendo com precisão cirúrgica seu papel dúbio (ele tem de ser sério e cômico ao mesmo tempo, e em mais de um nível), representa a crítica à CIA do jeitinho que os Coen conceberam o filme: uma mistura de violência e comédia no melhor estilo Happy Tree Friends, com um verniz de desbocada paródia a um órgão glamurizado ao extremo por Hollywood - e aí a trilha sonora, sempre prestes a virar piada, é de uma finíssima ironia. Se eu fosse reclamar de algo é do papel de Swinton, que é jogado para o alto no final e, na minha sincera opinião de fã, merecia um pouco mais de aproveitamento.
Nota 8,5.

Frankenstein
Apesar de um roteiro simplório ao extremo, o segundo e mais famoso longa sobre o Doutor que quer brincar de Deus e sua criação é certamente a mais célebre. Os pregos, a cabela quadrada, os olhos caídos, o terno e os ombros largos foram uma apropriação estilosíssima da descrição de Shelley. Karloff está irreconhecível (nos créditos iniciais, o intérprete do monstro é representado por um "?"), e brilhante, acertando na teatralidade e fluidez dos movimentos e expressões do monstro, mesmo tendo um tempo surpreendentemente pequeno em cena. O resto do elenco também está bem, especialmente Clive, constantemente amargo, e Van Sloan, sutil e ainda assim notável. Contando com uso mínimo de trilha sonora (o que nem sempre ajuda), o filme ganha personalidade com a direção fluida de Whale e com cenas basicamente inesquecíveis.
Nota 8,5.

A Noiva de Frankenstein
Pegando o que já era bom no primeiro filme, e ainda dando mais qualidades, a continuação, apesar de feita 4 anos após, brilha com força. Os (excelentes) efeitos visuais já aparecem com tudo no começo, assim como a bem mais presente trilha sonora e uma melhora generalizada no roteiro. Os diálogos se tornaram menos simplórios, há uma ótima utilização da maior gama de personagens, mais mortes, eventos mais interessantes, porque, afinal, os melhores momentos da clássica história de Shelley foram introduzidos nessa continuação. A cena na casa do cego é linda, e torna o personagem ainda mais intrigante, assim como a constante ambigüidade de seus atos. Dessa vez um protagonista, Karloff se esbalda no monstro, e cresce junto do personagem, assim como Clive, que surge diferente, feliz e sonhador, dando-lhe mais elementos trágicos, e a novidade, Thesiger como Pretorius, está excelente em sua qualidade gótica e macabra - algo refletido na ótima direção de arte, inclusive. E e a vez de Elsa surpreender, numa brevíssima e mesmo assim marcante aparição (tirando o divertidi papel de Shelley). O filme é mais azeitado que o anterior, para nosso ganho.
Nota 9,5.

Drácula
A história de Bram Stoker ganha uma transposição fiel em narrativa central e em clima, pois o filme de Browning é macabro e elegante, totalmente de acordo com Vlad Tepes. Bela Lugosi protagoniza o filme e toma-o para si, numa performance que envolve não só seus olhares congelantes, seus movimentos sinuosos e o vozeirão de cavalheiro. Ele consegue passar aquela sensação de inquietude independente de estar ou não em cena, ou de estar ou não acompanhado de testemunhas - ele parece sempre prestes a atacar.

Embora Lucy seja descartada displicentemente, os personagens ganham a relevância necessária: John é fraco pois tem apenas seu amor para defender Mina, que, por seu lado, protagoniza cenas ótimas após a visita do Conde; enquanto isso, Van Helsing (o mesmo Van Sloan de Frankenestein, e ainda melhor) é a austera e decisiva força intelectual que enfrenta Drácula, e Reinfeld é a figura da loucura, uma figura cuja risada demente torna tudo mais macabro ainda. Nesse caso a trilha sonora parca funcionou perfeitamente, e se a narrativa não tem o mais excitante dos ritmos, ao menos há uma porção de momentos marcantes, ressaltados por uma direção de arte impecável e um figurino minimalista, que realçam boa parte das imagens históricas criadas por Browning - e, claro, Lugosi.
Nota 9.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

4

Todos os Homens do Presidente: Será que se fizessem um filme sobre uma investigação jornalística hoje em dia ele seria tão bom? Pra começar, alguém faria um filme praticamente sem ação, um filme jornalístico em essência e formato, uma investigação calcada em diálogos, nomes e informações? Colocariam personagens tão coerentemente rasos (a cena do bebê nascido é incrível), no sentido comum da palavra? (ao que o filme dá uma bela lição de como dar profundidade sem seguir o riscado, ajudado pelas atuações exepcionais de Hoffman e Redford) O que mudou de lá para cá? As notícias se tornaram ruins? O jornalismo se tornou ruim? Os diretores de jornais perderam a força de um Bradlee (Jason Robards, arrebatador)? Ou Hal Holbrook não deixou seguidores para continuar seu legado de segredos sussurrados por detrás de sombras? Seja como for, esse filme parece não só de época em sua narrativa e em sua idade, como também em sua pura possibilidade. *****


Edifício Master: Trocando seu olho pelo da câmera, pela simples impossibilidade de o primeiro não gravar imagens, Coutinho se senta com dezenas de moradores do Master e não tenta extrair nada, ou dirigir-se a uma meta: ele opta por ver. Ele apenas olha, observa, contempla, usando de sua voz o mínimo possível, trocando fluidez temática por uma torrente de realidade, um retrato impecável de visões díspares, sensações antitésicas e geografias iguais-diferentes - seja na planta dos apartamentos, ou no mapa das vidas das pessoas. Diversidade em Copacabana, o variado no específico. E o melhor: o filme não pára no filme. somos convidados a pensar tudo que foi dito, como se (e é isso que coutinho almejou fazer) aqueles seres humanos conversassem diretamente conosco. Uma possibilidade de vivenciar, sentir, ouvir, opinar o máximo com o mínimo. ****¹/²

Crepúsculo dos Deuses: Wilder levando suas temáticas aos limites de Hollywood, e extrapolando-os com fogos de artifício e música fanfarrona é sempre um espetáculo à parte. O ataque ao estrelismo (tão aparentemente anacrônico quanto adaptável para os dias de hoje) é uma junção da impetuosidade do cineasta e a de Swanson, numa atuação que incomoda de muitas formas. A exemplo da atuação primorosa de Gloria, o filme tem metalinguagem para dar e vender, de todos os tipos e com inteligentes ressonâncias na narrativa - minha preferida é a tragédia invisível aos olhos de Norma, que é vista com galhofa por Wilder, galhofa essa que se torna pena, quase vergonha, na cena final.

Com um roteiro incansável, que vira mesas com tudo em cima e faz de cada coadjuvante uma peça-chave no escrutínio de Norma (especialmente no tocante à visão que os outros têm dela), Wilder ainda dá vigor intenso ao filme, usando de cenários suntuosíssimos para embasar ainda mais o estudo de personagem e, numa conseqüência tão orgânica que dá gosto de ver, a venenosíssima visão dos bastidores da própria plataforma de sua produção. Ele inclusive enobrece o ato de escrever roteiros, apenas para puxar o tapete e mostrar que há sintomas de crise inclusive nessa profissão. De novo: se por um lado temos Cecil B. DeMille como uma ótima pessoa, temos outro cineasta cujos defeitos basicamente fundamentam o filme em questão. A tragédia aqui está como que em slow-motion, uma derrocada gradual que, procurando um fim já tardio, infecta a todos, menos o monstro de Hollywood-stein, a imagem blindada pelo faz-de-conta, que quer ser como o filme projetado na tela: imutável e inatacável. Quando Desmond finalmente é deformada, Wilder sutilmente apunhala de forma final aquela besta agonizante. Ou melhor, ele estende o punhal, e a besta, no afã de se provar indestrutível, joga-se contra ela. Wilder é o Shakespeare do cinema americano. *****