quinta-feira, 25 de junho de 2009

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Aprés vous...
O que “Por Gentileza” promete é oferecer uma visão complexa e reflexiva sobre a natureza do altruísmo. Antoine (Daniel Auteil) é um sommalier que conhece um suicida, chamado Louis (José Garcia), e o leva para casa para ajudá-lo. Essa boa ação, no entanto, vai ganhando contornos insanos, enquanto Antoine o motivo da depressão de Louis – sua ex-namorada, Blanche (Sandrine Kiberlain) – e vai tendo sua própria vida profundamente perturbada pela presença do homem. O problema é que ele faz literalmente tudo para ajudar o depressivo.

A parte curiosa é que ele só faz as coisas do jeito que sabe e/ou acha melhor. Ele nega a verdade além da conta, exagerando muito na máxima “algumas pessoas merecem algo melhor que a verdade”. Aqui, ele não só distorce o que aconteceu e está acontecendo, mas também interfere diretamente na vida de Blanche e Louis, para que os dois possam reatar. Mais de uma vez ele dá conselhos para a mulher largar seu atual namorado, compra flores apenas para espionar sua vida e esconde tudo do suicida, por julgar ser melhor assim. Igualmente, o emprego é arranjado para o amigo em detrimento de gente bem mais apta e promissora.

Isso leva a uma discussão interessante: graças a certas reviravoltas do roteiro, Louis fica feliz e disposto, e ele passa de desastrado a bom profissional. Mais do que mostrar a sofrível inversão de papéis (problema que o roteiro apresenta e o diretor Pierre Salvadori só piora com seu didatismo), esse detalhe mostra que ninguém é um depressivo daninho o tempo todo. Mas, oras, de que adianta um emprego se a eficiência do empregado depende de seu humor volátil? A sociedade cobra estabilidade formal, e só informalmente temos o direito de sermos instáveis. E é esse o desenvolvimento principal do personagem de Antoine.

Embora caia numa resolução previsível e pouco imaginativa, a trajetória dele ganha força ao ressaltar essa ilusão de estabilidade. Pode-se dizer que ele é, de fato, altruísta, e até demais. Não é para seu bem que ele gasta 600 euros em flores, mesmo que as use de forma inteligente mais tarde. Logo, mesmo sabendo que suas tentativas de ajudar causam situações caóticas, ele continua fazendo coisas pelo bem dos outros, e acha melhor que ninguém saiba. Assim, ele mente sem parar, para esconder que está na verdade interferindo ativamente na vida dos outros. Fica a impressão de que só se seu plano der certo é que valerá a pena ter causado tantos problemas, e mentir é apenas a garantia de que nada cairá por terra.

Assim, o roteiro tropeça quando força demais o egoísmo oculto nesse altruísmo, num julgamento um tanto automático de valores. Seria muito mais interessante abrir mão das reviravoltas e continuar enfocando o engodo de fazer as coisas ficar estáveis com as próprias mãos. A obra se tornaria ainda mais melancólica do que já é, mas a proposta deixa claro que o equilíbrio é impossível na vida do ser humano, e desenvolver isso sem cair num romance aleatório seria mais uma das boas ideias do roteiro, que anda rápido, e não se apoia em causalidades fáceis – exceção que confirma a regra: o isqueiro.

Há elipses interessantes de se notar, como o teste de emprego que Antoine arranja para Louis: fica claro que o sommalier treinou o amigo, e que este interpreta muitas das dicas de forma totalmente equivocada. Algumas gags acabam longas demais, mas a edição salva quase todas da direção tosca, que infelizmente puxa muito do filme para baixo. A repetitividade visual é sofrível, informações já dadas pelo texto são reafirmadas pela câmera de Salvadori, e em pouco tempo, essas inseguranças do diretor se tornam muito enfadonhas. Sorte que Auteil brilha em seu papel, mesmo quando o personagem está inglório para o grande ator. Sua interpretação de bêbado é excelente, e as pequenas mentiras improvisadas que tem de criar a todo tempo ganham uma naturalidade incrível.

Embora o retrato do altruísmo passe para uma discussão sobre a estabilidade interna do ser humano, a primeira é um passo da evolução e é desenvolvida a contento, enquanto a segunda é explorada com menos afinco e não reflete, no final apressado, toda a abrangência da instabilidade que todos os personagens do longa sofrem.
6,0

Homem de Ferro e Cloverfield. O primeiro continua divertido, até passa rápido e tem umas soluções narrativas bem legais. Tony Stark é um personagem muito interessante, e o final é de matar. Mas ainda tem muita coisa incômoda no tocante à vilãozada. Continua nota 7,5. O segundo também não cresceu muito nem caiu muito no meu conceito, também se mantém no 7,5. Se bem que deu pra reparar em bem mais nuances erradinhas do roteiro, umas ferramentinhas narrativas que soam didáticas demais e entregam a suspensão da descrença. Mas o bom uso de som, efeitos visuais e filmagem amadora fazem seu trabalho de detonar os sentidos e criar tensão, a ponto de esses problemas só incomodarem por pouco tempo.

Vi O Deserto Vermelho, do grandessíssimo Antonioni. O que dizer de um filme em que Vitti engrandece até perante A Aventura e O Eclipse? O que dizer das imagens sempre maravilhosas do diretor? O que dizer de um roteiro que é, diferentemente de A Noite, expositivo para levar os próprios temas do mestre ainda mais longe? Muito, isso é o que se tem a dizer. Mas não sei quando direi tudo isso.
9,5

A Garota Ideal deve ser um dos filmes mais esperançosos dos últimos anos. Sem dúvida há muitos meios de se ressaltar qualidades em personagens, e estes normalmente são metonímias para crença na bondade humana, num contexto geral. A obra do diretor Craig Gillespie e da roteirista Nancy Oliver não tem como protagonista alguém que muda a vida, positivamente, de todos ao redor (um grande ponto a seu favor, diga-se), ou que mostra o valor de fazer o bem para o próximo. O que, primariamente, faz a mensagem funcionar é o fato de ela não dar a mínima para o que é feito no assustadoramente (in)fértil subgênero filme-de-indivíduo-desajustado.

Sim, existe a estranheza dos amigos sendo lentamente transformada em rotina. Há tensão quanto ao perigo que a instabilidade psicológica representa – elemento muito bem aproveitado pelos atores, diga-se. A comunidade que reconhece o problema do louco e aceita viver sob suas regras peculiares? Está lá. Mas não é na bondade dos vizinhos que a esperança é notável. Ela está na própria figura Lars Lindstrom (Ryan Gosling).

É bem simples: um homem provido de algum tipo de distúrbio anti-social tem tudo para denunciar os podres da sociedade, ao mesmo tempo em que descobre as pequenas faíscas de beleza que fazem todos dar as mãos no final e saltitarem para algum lugar, certo? Não é o caso. O que existe em redor do protagonista não é o que o define. Mais: ele não chega ao outro extremo (igualmente piegas) de mudar a vida das pessoas que o ajudaram. O meio-termo é sensível e inteligente. Tudo acontece de dentro para fora, o que não é uma qualidade por si só, mas se torna uma quando despreza essas rotas fáceis e caminha com convicção até seu desfecho.

A conclusão da história importa menos que o fascinante trajeto até lá. A condição absolutamente interna de Lars, de início, dá a impressão antipática que todos ao seu redor parecem ter. Aliás, a diferenciação entre os vizinhos e o espectador é clara: aqueles vêem na boneca Bianca um motivo para ajudar, pois finalmente percebem, depois de muito relutar, que o homem tem um problema. O espectador, por sua vez, o vê como doente desde o início, mas, incapaz de ajudar como sempre, não se interessa pela simples perturbação mental. Ao longo do tempo, no entanto, é mais fácil se relacionar, não porque ele se torna mais sociável, mas porque sua personalidade se desnuda. Ele vai se revelando mais complexo e, assim, mais convidativo para a exploração. O roteiro, cadenciado, vai oferecendo as camadas do personagem a conta-gotas, e, assim, é depois da reação emocional (o advento de Bianca) que o escrutínio do personagem começa.

De fato, a tragédia do parto e a rejeição física ao contato humano são explícitas demais, indo contra o movimento de dentro para fora. Porém, se a primeira é quase jogada ao acaso (determinista, mas não em relação ao problema central), a segunda não é simples sintoma da condição, mas sim uma porta para oportunidades dramatúrgicas. Além do desnudamento de roupas, propriamente dito, causado pelo clima e pelo distanciamento de Bianca, Lars vai sendo descascado. Não com seu consentimento (algo que Gosling entende maravilhosamente bem), pois o homem é todo interno. É o simples vê-lo, a pura vontade do espectador de explorar o personagem, que revela toda sua complexidade. O papel de Patricia Clarkson (Dagmar) é fenomenal nesse aspecto: ela não interfere no processo do protagonista, apenas o observa, para dar aos familiares um relatório acurado do que está ocorrendo. Ela é passiva: assiste quando não pode fazer nada e só faz o que lhe é permitido. A cura, ela deixa claro, está evoluindo a partir de Lars.

A impressão que fica é que a existência ou não de Dagmar, ou de toda uma comunidade entendendo Bianca e aceitando-a como gente é supérflua. O roteiro cuidadosamente tece as “falas” da boneca de modo a nenhuma precisar de resposta. O protagonista se esquiva de qualquer tipo de agressão a sua nova relação, e, se isso é um mecanismo típico de pessoas com auto-estima baixa, é exatamente esse o ponto. Ele francamente ignora tudo e todos pois está completamente focado em outro mundo, que tem maiores chances de recuperá-lo do que um soco de realidade direto no queixo. Por outro lado, os bonecos dos colegas de trabalho são menos humanos, mas servem como resquícios de sensações e causam involução – o que é válido, mesmo que a discussão sobre o valor atribuído aos objetos fique pateticamente exposta.

Assim, a fantasia particular de Lars não é usada como instrumento de fuga, e sim de enfrentamento. Palmas para ele, que tem anticorpos para lutar contra problemas psicológicos, uma ideia quase alienígena no mundo atual. Ele é a prova de que não são pessoas que irão ajudar quando o problema não tem nada a ver com elas. Por isso que a comunidade aceita de pronto, quase fácil demais, o jogo do protagonista. O problema não é deles, e, afinal, não existe nenhum esforço em brincar de faz de conta. Falta um comentário em relação a isso, já que cada um acha que está fazendo algo importante para a recuperação de Lars, quando, na verdade, está apenas varrendo as folhas da calçada em que ele anda. Fica claro que, se houvesse folhas, ele continuaria caminhando mesmo assim.

Não é vivendo com seus problemas que ele se prova “especial”: é superando-os. Mais que mostrar o poder que a sociedade tem sobre um homem, ou vice-versa, A Garota Ideal mostra o poder que um homem tem sobre si mesmo, e como a sociedade é apenas pano de fundo de um processo hercúleo, utopicamente desenvolvido de evolução interior. A inserção do indivíduo de volta em um meio social é apenas consequência de seu esforço. É como uma auto-congratulação pelo feito, já que, após a cura, Lars é inegavelmente superior a boa parte de seus convivas.

O final, outro momento expositivo demais, não tem nada de genial, sendo apenas a consequência óbvia do trajeto. A última frase surge atabalhoada, com pressa de acabar e mostrar a que veio, e, não fosse o fino trato dado a tudo que veio antes, ela seria um problema relativamente sério. Como as coisas estão arranjadas, é apenas um pequeno engodo de uma roteirista que já tinha um estoque monumental de acertos.
8,5