quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

7

Em O Lutador, Aronofsky trabalha primorosamente idéias abstratas por um viés fortemente concreto. Sua câmera, uma presença física, quase nunca distante de seu objeto de estudo é o meio que ele usa para impor o físico ao abstrato, usando planos belíssimos (e simples) para termos uma visão nostálgica, numa posição de quase veneração. Alguns graus para o lado, e o rosto surge, surge como está, empapado em lágrimas, em sangue, inchado, envelhecido, estilhaçado. Enquanto há uma sensação de tímida adoração, ao mesmo tempo há a desnudação total, o vislumbre das intimidades mais variadas de um homem que odeia seu nome, por um motivo que não carece de menção.

Levando-se em conta o roteiro, fica claro como Aronofsky não se bastou no ótimo texto e, de maneira simples mas eficientíssima, imprimiu ainda mais personalidade à vida do protagonista. Afinal, Siegel passa longe do maniqueísmo, não desnuda Randy logo de cara, preferindo fazê-lo aos poucos até o momento certo (quando vemos seu trailer por dentro), trabalha temas como redenção e nostalgia de forma sutilíssima e tocante, e consegue focar a atenção naqueles momentos de transição, aquelas cenas que todo ser humano vive, mas que poucas telas de cinema têm o prazer de mostrar. É nisso que se baseia Rourke, calcando todos os seus momentos, seja a humaníssima cena dos frios, a estilhaçante briga com a filha, ou as violentas lutas, no mais puro naturalismo, numa interpretação assustadoramente sóbria.

Também é de cair o queixo a atuação de Tomei, com aqueles sorrisos que parecem surgir do hábito profissional, mas sobressaem-se duas cenas em que ela mais mostra seu interior - e se despir em cena diversas vezes só dificulta o trabalho de se despir emocionalmente. Ela é tratada por um dos grandes roteiros do ano com austeridade, ela é o mundo real, o mundo "de fora", e Randy faz sua escolha, melancólica, talvez desesperada, mas chora de alegria por ainda ter pessoas que o amam. E o salto é, debaixo da incerteza, a garantia de que Randy está vivo.
10,0

Revi O Curioso Caso de Benjamin Button e continuo achando um filmaço. Além da parte técnica que é de um primor absolutamente constante, temos uma direção que cria um universo que anda em corda bamba por 170 minutos, e nunca erra um passo sequer, andando bem na linha entre um acontecimento fantástico e o mundo real. Ótima escolha, esse equilíbrio ressalta a melhor perspectiva oferecia pelo roteiro, que aposta em pequenos acontecimentos, atos e falas para se sobreporem à eloqüência das frases mais explícitas de "ensinamento" numa bela metonímia, eco da espinha dorsal do texto. O jogo constante entre o extraordinário e o ordinário é um primor exatamente por acontecer dentro de um mundo estabelecido como real, sem a necessidade de resvalar entre dois universos diferentes, tirando disso sua força e sua razão de ser.

Desplat é particularmente feliz por, já em poucas notas, fazer o espectador mergulhar totalmente naquela existência ilógica, fantasiosa, e seu uso constante só faz o filme ganhar. O ganho também vem na forma do elenco, liderado por um Pitt hipnotizante, mais sutil e cheio de nuances que nunca, aceitando e cumprindo o desafio de interpretar o observador protagonista. Embora Blanchett me pareça um tanto exagerada como anciã doente, ela vive Daisy com intensidade. P. Henson acerta em uma caracterização parca em sutilezas mas cheia de um explosivo amor materno, nunca "ownnn" demais, e Swinton brilha em suas cenas graças a uma alternância belíssima entre charme altivo e acessibilidade tímida. Ormond cresce sutilmente na leitura da história, chegando ao final assim como Button chega aos 50 anos: ele, cheio de sabedoria que não aparenta, e ela, mais sisuda quanto a tudo que aprendeu naquele dia.

9,5

Tendo como título o grande vilão do filme, Dúvida arrebata através de um roteiro excelente que consegue desenvolver o tema em uma porção de cenas e personagens exemplares, dando completude ao todo. Somos apresentados à dúvida como uma presença malévola, uma perturbação incômoda de início, mas desastrosa a longo prazo, invadindo a vida de todos com violência. Padre Flynn faz as coisas de acordo com sua certeza, mas a intromissão da Irmã Aloysius o estilhaça e transforma sua bondade num desafio gigantesco. Sra. Miller também tem na freira a deturpação da tão sofrida paz sua e de seu filho. Irmã James é constantemente tirada de seu equilíbrio através da língua viscosa de Aloysius, e só encontra alento quando se sente certa de algo. E o filme só cresce ao mostrar uma personagem que poderia ser uma vilã como uma pessoa não muito diferente de James, por exemplo, por ter, na certeza inabalável, um meio de se enrijecer perante o que acontece a seu redor - o final é acachapante por esse motivo.

Já que estou na cena final, vale dizer: a câmera se afastando foi uma das piores idéias de um filme cujo diretor faz inúmeras más escolhas - nesse caso, dando uma cara de dramalhão de quinta a um brilhante roteiro. A idéia de "entortar" o enquadramento (recurso que Shanley deve ter ter achado genial, sabe-se lá por que), as câmeras petrificadas, a total falta de dinamismo no set, tudo isso marca um regente que não tem idéia do que fazer com o que tem, e isso não é pouco.

Além do texto exepcional, o elenco fulgura, terminando por liderar, por nuances lindas, um filme de formato quase insípido. E muitas vezes funciona: a discussão de Aloysius e Miller, todas as cenas da sala de Flynn, o sermão da intolerância, as conversas no banco da paróquia... todas são cenas absolutamente regidas por um roteiro e um elenco de primeiríssima categoria, e é só a eles que a alta voltagem dos momentos se deve. Os personagens grandiosos, o roteiro fino, e as atuações dignas de Oscar saem intactos. O filme não.

7,0

É um tanto precipitado e romântico dizer que Milk é um filme direto-ao-ponto. Sem dúvida poderia ter sido, e sem dúvida os realizadores decidiram por um caminho mais equilibrado. O retrato da época (brilhantemente ressaltado pelo irretocável trabalho de figurino) e dos personagens é prático, sem delongas ou grandes digressões focadas em causar emoções no espectador. Os eventos do filme são, sim, objetivos; independente da fidelidade dos acontecimentos, o que se passa no roteiro torna a história mais complexa, ajudando a investir nas dimensões do movimento gay, no aprofundamento dos trâmites políticos e no desenvolvimento dos personagens. O que salta aos olhos é como van Sant e Lance Black não se perdem em tentativas de emocionar e focando numa sobriedade dramática que concomitantemente evita a manipulação emocional e freia uma secura extrema.

São raras as vezes em que diretor e roteirista tentam manipular o espectador, e o elenco encara corajosamente o desafio de retratar personagens complexos. Pegue Brolin, por exemplo, que é tratado com uma humanidade inesperada e, nem por isso, investe numa figura demasiado romântica e trágica - está tudo em proporções magnificamente bem dosadas, o crescendo de discordância perante Milk, a tensão política de sua carreira, a inegável tristeza que habita seu interior. Hirsch, por outro lado, aparece como uma figura antipática, e, ao mesmo tempo, cativante, de algum irritante modo. Todas as cenas em que ele faz transições com seu personagem, indo, por exemplo, da futilidade revoltada para um engajamento sinceríssimo, são o que tornam sua atuação outro dos grandes trunfos do filme. Luna é suportado pelo roteiro, que o permite ser depreciável, e pela direção, que diminui sua presença a ponto de mediana perturbação, fazendo-o ressoar com intensidade apenas no personagem de Harvey. E Franco, impressionante em seus padrões, passa a sensação perfeita que causa no personagem-título, ajudado por diálogos ternos, mas amargos, que ele adequa com habilidade a sua performance.

Só pela qualidade de um elenco que mesmo em menores participações (Grabeel, Pills, Cross, Garber, O’Hare, Rosenman) eleva o nível à estratosfera, Penn já tinha um desafio incomum. Como se fosse sua própria natureza, o ator encarna o espírito resolvido e determinado, mas altamente bem-humorado de Milk, alternando brincadeiras espontâneas com discursos que parecem surgir no calor do momento, usando de trejeitos quase desmedidos (medi-los em demasia seria enfraquecer a caracterização), reconhecendo a seriedade de certos momentos mesmo quando tenta mascará-la, potencializando emoções que explodem de dentro para fora em palavras gaguejadas e gritos, externalizando constantemente o que existe dentro de seu personagem, chegando ao ponto de soar naturalista em sua grandiosa entrega.

Com idêntico fervor, mas dessa vez à causa gay, Dustin e Gus desenvolvem a história como um libelo em favor da liberdade, sem nunca perder de vista que, como Milk acreditava, a liberdade era uma conseqüência, pois a devoção é principalmente aos direitos dos homossexuais. A escalada de conquistas, a explosão do tema por todo o país, e talvez o mundo todo, a fatídica necessidade de todos ficarem frente a frente com os gays e finalmente reparar neles, sem desdém ou ilusões de invisibilidade, é outro aspecto em que o filme de van Sant se torna grandioso. E embora o diretor aposte numa manipulação largamente incoerente bem no final da projeção (ao que isso não é feito em outro momento-chave) e, às vezes, use a bela trilha de Elfman de formas menos proveitosas, sua direção é firme, fresca, e o uso de imagens de arquivo é feito com pungência. Aquilo aconteceu, de verdade, e isso não se pode negar nem na ficção nem na realidade.

9,0

Todo diretor sabe sobre o que é seu filme, e sabe em que focar. Como resolver isso, então, quando o foco está em mais de uma coisa, e uma dessas coisas é igualmente importante e periférica? É o que Ingmar Bergman tem de resolver em Gritos e Sussurros. Se por um lado, temos três irmãs no centro inegável da trama, temos Anna, a criada, cujo papel é tão essencial ao tema quanto é secundario na vida das mulheres, por motivos obvios. O gênio sueco resolve isso nao atraves da direção, ou de um elemento especifico da narrativa, mas com todo o seu poder de regente, revelando (mais uma vez) que é intelectual e artisticamente soberano ao fazer um filme.

Temos o trabalho de som, que usa relógios constantes para ditar a vida trôpega de Agnes, sinos para evocar lembranças que aparecem fielmente, sons corriqueiros arranjados como insuportáveis quebras no silêncio, sendo ja este incômodo por si só. Sem falar na trilha sonora, que surge em certa cena dissonante, sem fazer sentido com a assinatura sonora do filme (e de boa parte da filmografia de Bergman), de acordo com o que o momento representa. A fotografia e a direção de arte, nada sutis, têm como intenção principal impor o vermelho com força nas vidas das personagens, sendo trocado pelos sentimentos de cada uma das mulheres e projetando-se no presente. Veja como as composições fortissimas solidificam, emolduram, como numa pintura, a distância entre Maria e Karin, e como, na cena do perdão, serve como superfície para novas emoções, adquirindo uma maleabilidade nova. Ele parece estar lá como ressalva, um `apesar de todo esse vermelho, elas se aproximaram`, mas nunca, em momento algum, se ausentando.

Karin, em uma única cena repleta de significado, demonstra a imposição da cor, ao se despir na frente de Anna. A primeira vê isso de forma profissional, pois a criada tem de cuidar das roupas da ama, mas a segunda parece ver naquilo um elo emocional, como fica claro nas varias cenas em que se despe para dar mais conforto. Mas Karin se despe, e depois se veste.

E é quase trágico que a mulher seja tratada de tal maneira, quando estava claro que tinha amor e afeição quase maternos a dar. Ela é tratada como peça chave da narrativa, mas a direção se encarrega de apagá-la , dando a aparêcia de personagem pouco relevante. E se não bastasse o rigor formal (que é metade da indiferença de Karin e Maria perante a Anna, sendo a outra metade o fardo das emoções vermelhas), ainda há uma brutal diminuição da personagem; enquanto as lembranças das mulheres são esmiuçadas com uma narração em off, as da criada são meramente mostradas, e mais, são apenas um sonho.

O sonho, profundo e essencial para a trama (como o de Morangos Silvestres não foi), ressalta os vários tipos de ignorância de Anna, indo desde a mera impossibilidade de entender o que se passa na mente das frias amas, até uma sensacão de melancólica importância provinda não de carinho sincero de Agnes, mas sim de sua situação extrema, e do conforto único que a criada ofereceu. Isso fica claro na cena final, em que Agnes, confrontada com a deprimente fugacidade da felicidade, com a arrebatadora maré de sentimentos, traz a apoteose do senão das irmãs todas, ao que Anna e deixada para trás, sem nem uma conclusão narrativa. Ela deu de cara com a verdade, mas a reação não e mostrada, pois `não importa`.

A claustrofobia, o terror constante do império interior de cada uma das irmãs, a perturbadora (mas passageira, mesmo que demorada) presença da morte e a ainda mais aterradora companhia das memórias (que nunca se vao) e refletida desde o começo, em planos estáticos, mas abertos, do exterior que so e visto como promessa, seguidos de planos fechados em relogios, numa abordagem brutal da vida das pessoas que residem aquela casa. E comentar Ullman, Andersson, Sylwan e Thulin é no minimo ofensivo, por dar a entender que suas atuações brilhantes podem ser postas em palavras. Mas como essa obra de arte também merece ser intocada, e cá está um comentário sobre ela, essas mulheres merecem ao menos um texto a parte.

10,0

Mesmo que o roteiro de Coraline se valha de ferramentas previsibilíssimas e lugares-comuns abundantes, o trabalho de Selick na direção é um daqueles casos de grande redenção, em que uma estupenta obra nasce mesmo com uma base aquém. O clima é irretocável, sinistro na medida certa e regado a uma trilha sonora excepcional. A diferença de sensação de um mundo para o outro, e as mudanças que vão sucedendo em ambos, são manejados com maestria e sensibilidade, nunca entregando momentos muito macabros logo de cara. Vem muito mais da direção do que do roteiro o tédio inicial da vida de Coraline, assim como o deslumbramento perante o mundo "perfeito", e a harmonia que vai lentamente se instalando em ambos os mundos.

E isso é realmente interessante, a idéia de que o mundo real é bom, com um verniz de lados negativos, enquanto o mundo atrás da porta é mau, disfarçado por uma casca de lados positivos. E, mais uma vez, o roteiro é salvo (ou melhor, corrigido) por outro elemento, o visual. Veja o final, em que a sutileza belamente anunciada pela ambientação inexiste, ao passo que a cor é cinzenta, mesmo em meio ás cores do jardim, carregando a bem-vinda dicotomia. As escolhas visuais dão força ao filme constantemente, com cenários detalhados e uma fotografia apurada, e é lindo que nenhum desses elementos carregue nos vícios Burton-escos, encontrando seu eixo. Por sinal, ver em 3D só aumenta a graciosidade da experiência.

8,0

A cena-do-filme de Quem Quer Ser um Milionário? é o momento em que Jamal "tem" que pular num fosso de merda para ver seu ídolo. O personagem está todo escrito ali, enraizado como uma criança diferenciada dentre tantos favelados de Mumbai. Por mais arredios, selvagens e independentes que todos os seus companheiros sejam, essa atitude, essa ânsia por fazer o que parece certo a despeito de todos os contras, é o que o define, tornando, num raríssimo caso, o bom e velho Destino numa verdade crível dentro da história.

Encontrar o tom correto não parece fácil, já que é um filme otimista cujo protagonista sofreu horrores durante a infância, chegando á adolescência, sabe-se lá como, sem graves sequelas. O que o filme não deixa de mostrar é como aquela existência é penosa, porém corriqueira e abundante nas favelas de Mumbai, mostrando que as crianças que crescem ali podem acabar indo por caminhos variados, e, focando-se em personagens seletos, fica claro como a personalidade de cada interfere nessa estrada, e como o inverso igualmente ocorre.

Adotando uma estrutura realmente livre, cheia de alternâncias temporais, o roteiro dá conta de tudo isso sem alongar os lugares-comuns (o chefe de Salim e Latika, o envolvimento do delegado com a vida de Jamal) e fazendo escolhas sóbrias (a resposta da última pergunta, que podia dar liga para uma pieguice extrema, e não seria a primeira vez no filme) para evitar uma romantização exacerbada. Por sinal, é notável que o filme, mesmo em seu otimismo, não romantize a dura estrada dos garotos, deixando-a tão brutal e marcante quanto devia ser.

Ponto para Boyle, que encontra uma linha firme e não hesita em se aventurar fora dela para melhores resultados - graças a isso, há câmeras nervosas, mas controladas, uma fotografia belíssima que passa longe da repetitividade e climas variados, fervorosamente condizentes com seus momentos. Embora caia num didatismo irritante mais para o final, o diretor só deixa os acertos mais claros quando ajudado pela extraordinária montagem.

Outro senão é o personagem de Salim, que tem pelo menos dois momentos pouco inspirados no roteiro, embora os intérpretes sejam maravilhosos e cativem de forma completa. O mesmo se pode dizer dos jovens que interpretam Jamal, todos entregues de corpo e alma, os mais novos por motivos óbvios, e Patel, por talento, já que ele atua com um vigor e uma sensibilidade insanos. Kapoor também deve ser citado, por dar vida e cor a Prem com a máscara e a sinceridade sempre lutando em seu rosto.

Acompanhado da ótima trilha de Rahman, esse belo filme só torna Danny Boyle ainda mais interessante e prova com estilo e firmeza que ele é um diretor extremamente potente e competente, e as narrativas só tendem a usufruir dessa força.

8,5