segunda-feira, 18 de maio de 2009

4

O subgênero de “filme-catástrofe” tem pelo menos um problema sério já de partida: como aliar o pessimismo de uma tragédia (às vezes global) com a possibilidade de entretenimento. Esse segundo elemento acaba carecendo de certo positivismo. A sensação de desespero, de tensão e de negativismo é bem-vinda, e o espectador a busca, mas há de haver algum tipo de virada para compensar esse peso. Os inúmeros exemplares desenvolveram inúmeras táticas, e os realizadores de Presságio tinham duas opções: escolher uma das já feitas, ou criar uma nova. O que fizeram não foi nenhum dos dois.

Se o tipo de peça-chave usada não é nem um pouco original, dentro dessa classe restrita ela é uma abordagem no mínimo curiosa – pode-se citar o japonês Casshern, mas este tem o apocalipse como ferramenta, e não objetivo. É uma antítese, em boa parte: só há originalidade ao se usar lugares-comuns. Não que Alex Proyas não faça bom uso da direção para refrescar ideias batidas, com planos elaborados e empolgantes. Até mesmo o roteiro em si tenta se prover de faíscas para dar algum tipo de vida aos numerosos clichês, como na primeira cena heroica de John, em que o esse heroísmo é sabiamente ignorado pelo personagem de Grace.

Mesmo assim, praticamente todos os elementos que a trama necessita para continuar andando são tirados de obras recentes, e não são soluções fáceis, mas facílimas, para conectar as pontas soltas. Logo, todo e qualquer problema familiar dos personagens falha miseravelmente em desenvolvê-los, simplesmente porque são os dramas de sempre. Não obstante, a opção por manter os elementos do roteiro numa lógica determinista, em que nada acontece por acaso, é uma das únicas boas escolhas que os três roteiristas conseguiram confeccionar. Mesmo enchendo o enredo de elementos não exatamente necessários (os “seres sussurrantes” não precisavam de nem metade daquelas aparições físicas), eles acertam ao dar um forte contexto místico aos eventos. E essa bela honestidade (“Sim, estamos colocando religiões no centro da história”) pode lembrar Sinais, mas as criaturas de Presságio enriquecem mais sua narrativa.

Se o protagonista só tem força em cenas ocasionais, Cage reflete essa irregularidade em sua interpretação. Ele se sai muito bem em cenas corriqueiras e singelas, mas, quando confrontado com elementos fantásticos – o grande desafio desse tipo de papel –, sua credibilidade cai com força, chegando a constranger em certos momentos. Byrne também balança, caracterizando bem sua rasa personagem, mas criando uma perturbação às vezes excessiva. Assim, sobram papéis pequenos, como o de Hopgood e o de Townsend, e estes acabam oferecendo as melhores atuações do longa, retratando a família de John com graça. Pouco se pode dizer de Cantebury e Robinson, já que se revelam atores mirins de pouca expressão.

Nos departamentos técnicos, há muitos destaques. Os efeitos visuais, salvo os animais em CGI, são excelentes, dando fidelidade não só a imagens incríveis, como também a acontecimentos realistas como os acidentes – destaque para a excepcional cena do avião. Também ajuda na tensão a eficiente edição, que comprova na tragédia de metrô que um plano-sequência não é o único meio de intensificar uma cena. Além disso, os cortes pesados e climáticos em cada mudança de dia ressaltam a iminência da tragédia. Talvez o melhor aspecto do filme, a fotografia conta com uma iluminação de primeira, e não perde de vista a tensão, seja escondendo a face dos “seres”, seja criando um perturbadora luz solar – e é brilhante o modo agourento como o Sol é usado nos enquadramentos da parte final.

Além disso, a utilização do som é sóbria, mesmo em meio ao mais completo caos. Em vez de cacofonia, há uma seleção de ruídos precisos, altos, que transmitem perfeitamente a proximidade de destruição. A música de Marco Beltrami é bem dosada, via de regra, e cria até um valor diegético, no retorno de John a casa depois do acidente de avião: no fundo, um som similar ao de uma turbina toca sutilmente, para dar a sensação de terror já distante, mas ainda presente. Ademais, os acordes histéricos e agudos quase sempre funcionam para criar uma atmosfera macabra, e composições mais clássicas (no sentido mais literal possível) ganham notas marcantes.

Embora todas essas qualidades não destituam Presságio de seus grandes defeitos, ao menos fazem jus a uma obra que tem a coragem de se enveredar por mais de uma crença e por temas e sensações poderosos. O fim do mundo é reduzido a um grandioso e belo espetáculo como sempre, mas é o que vem depois – e o fato de haver algo depois – que dá o bem-vindo diferencial.
7,5

Doze homens e uma sentença é uma obra essencial para se entender o uso de coincidências e possibilidades no Cinema. Talvez a Arte que mais sofre com o ceticismo, a Sétima é constantemente confrontada com reações como “ei!, isso não seria muito provável!”, ou “ah, mas isso é coincidência demais!” O filme de estreia de Sidney Lumet torna esses acasos e improbabilidades o combustível do enredo, de tal modo que o caso que o júri tem de analisar não é solucionado. O final pode passar uma sensação de triunfo, mas é mais pela dedicação dos doze homens ao sistema judiciário que os EUA criaram, e não porque tudo se resolveu. Afinal, o garoto era inocente ou não? É absolutamente impossível dizer.

O enfoque não é na inocência ou culpa do réu, e sim na moral dos homens, na ética que lhes toca mais profundamente. Logo, cada um dos doze personagens tem uma visão bastante particular, e cada um passa por mudanças de julgamento ao longo do tempo. O que se dá, ao final, é uma noção coletiva de que estar com certeza não é possível naquele caso, e que a condenação de um ser humano baseado em incertezas é muito mais séria que o possível risco de dar a liberdade a um assassino. Se, por um lado, essa confiança na inocência é perigosa, o impecável roteiro mostra como a dúvida abala as pessoas, e como a certeza (às vezes cega) é muito mais cômoda.

Não é uma crítica direta ao sistema de júri estadunidense, mas é uma demonstração delicada de como a mentalidade pessoal, desde os mais potentes pragmatismos até os mais ínfimos enganos, pode fazer tudo ruir. É sensível como a trama entrelaça as individualidades dos personagens com a fragilidade da verdade, que é uma só, mas é praticamente impossível de ser alcançada. As mentiras, pressuposições e aproximações pessoais são muito mais agradáveis e simples, e são normalmente a base para constatações tidas como definitivas.

Assim, o ponto a que se chega é que o estudo das probabilidades não leva à certeza, mas a um ideal diferente. Na trama, esse ideal é refletido pela ação implícita na definição de “culpado” e “inocente”. Dar o veredicto inocente é ser, talvez, omisso quanto a um crime. Dar o veredicto culpado, por outro lado, é ser ativo na execução de uma pessoa que talvez não seja culpada. E, na impossibilidade de encontrar a realidade completa, de solucionar o caso com justiça absoluta, os doze júris preferem se ater à incerteza menos danosa, numa bela demonstração de racionalidade altruísta.

Lumet, por outro lado, usa essa discussão de outro modo. Apesar de criar uma ambientação documental (ajudado pelo cenário único e por uma dúzia de atores, todos vigorosos), há intromissão dramática e estética no que poderia ter sido feito aos moldes do cinéma vérité. Logo, o ideal que o diretor busca não é o da realidade, porque seu filme é de ficção – e o filmar-realidade não é simples de ser alcançado. O que ele busca é algo mais: assim, ele afirma o Cinema como suporte para uma rede de eventos e ideias que não se subjugam à verossimilhança completa. Um filme realista poderia ter escolhido personagens de origens e mentalidades mais homogêneas, pelo acaso, mas isso tornaria tudo menos complexo. Se não é fácil confeccionar uma ficção realista, o desafio não é menor em juntar figuras e desenhar comportamentos e pensamentos hipotéticos, influenciados uns pelos outros e pelas circunstâncias. A (im)probabilidade não é relevante quando valores profundos como a dramaturgia, a mensagem e a solidez da obra estão em jogo.

O que faz de Blow Up uma obra de gênio não é simplesmente seu apuro estético avassalador. É a extrema oposição que o visual faz com a fala. Quem aprecia Antonioni está acostumado a ver a imagem assomar acima de diálogos, tramas e até mesmo personagens (vide O Eclipse), mas no primeiro filme em língua inglesa do italiano, a discussão atinge um novo nível. Ela se insinua através de um protagonista fotógrafo, que ganha a vida para dizer o que quer através de imagens. Isso fica claro na cena em que um colega de trabalho diz que acabou de bolar legendas para as fotos, e nem se preocupa em citá-las. Isso demonstra o mundo silencioso, visual, em que Thomas vive, um mundo em que ele não tem voz, no sentido literal. O que ele diz pelas fotografias, por outro lado, também é de pouca importância.

O mote do filme, o assassinato, demonstra muito sobre o personagem. E a centralidade do evento vai muito além de sua demora em surgir na narrativa, como reflexo da displicência perante acontecimentos sérios. A questão é que a evidência fotográfica, e praticamente todas as descobertas relacionadas, poderiam entregar o crime já resolvido nas mãos da polícia. Assim, o rumo que os eventos tomam diz muito sobre as limitações pessoais do protagonista. É com habilidade que o roteiro costura ações que vão se desviando da eficiência, até que a apatia contamine toda a história – chegando ao ápice num anticlímax violento, totalmente oposto à euforia inicial.

Essa urgência é artificial, algo que o enredo inteligentemente comprime em sua cronologia: a história se passa em um só dia. Os eventos são numerosos, tanto que elipses temporais parecem existir para juntá-los em um todo mais cadenciado e brando. Mas não, é um único dia, de ritmo intenso, como se estivesse abarrotado de realizações importantíssimas, e não está. Para adicionar aquele paradoxo típico de Antonioni, é nesse vácuo que o personagem é construído, exatamente em função de seu vazio. Seus minúsculos gestos (o pousar delicado de um toco de cigarro na estátua), as mudanças de humor (a reação às duas garotas que querem ser fotografadas) e o modo como trata as mulheres em geral (que pode ir do desprezo profissional à misoginia pura) são amostras de como seu comportamento é arbitrário, e revelador. E isso dialoga diretamente com sua profissão.

Se, por um lado, ele faz fotografias de pouca “relevância”, em ambientes fechados, em dado momento ele se vê num parque, local aberto e incomum, tirando fotos que se tornam importantes. A ineficiência com a qual lida com essas informações é quase determinista, lembrando um pouco os personagens trágicos de Fellini, presos, como Thomas, a suas limitações profissionais e comportamentais. Nessa linha, o grupo de mímicos, que abrem o filme numa curiosa barulheira, é uma peça-chave na obra. O ambiente urbano, frio de Londres é como local de folga para tais profissionais: logo, eles gritam a plenos pulmões. Em uma situação mais propensa, se voltam ao silêncio da mímica, mostrando que, como o protagonista, não precisam de palavras para criarem comunicação.

Nessa interpretação se forma outro questionamento: na arte de falar sem palavras, apenas com imagens, há os que conseguem e os que não conseguem. Os mímicos certamente têm sucesso, a ponto de fazer alguém pegar uma bola de tênis imaginária. Se o protagonista tem, isso é explicitado no último segundo antes do “The End”, em que Antonioni se assume de forma definitiva como um terceiro profissional da imagem. Ele também se esforça para criar algo (Thomas) que não existe dentro do universo do filme, esmiuçando razões para essa não-existência: futilidade, deslocamento, inaptidão, falta de bom senso, covardia, maus costumes. Mais importante que as composições primorosas que a câmera do cineasta habilmente capta é o vasto leque de possibilidades que ele abre para explicar um vazio.
10,0

“Isso já não é mais aplauso, mas um pretexto para esperarem que os corredores esvaziem”

Com essa frase, Margo Channing (Bette Davis) enriquece seu retrato consideravelmente, além de revelar um caminho de interpretação fascinante para A Malvada. A fala denota, imediatamente, um tipo de modéstia que não faz sentido perto do que foi mostrado da personagem até então. O uso dessa humildade, logo, ganha outro valor, por ser tão avesso à personalidade de Margo: é a visão dela que se projeta por essas palavras. Enxergar as pessoas como bajuladoras, em que só fazem algo se é para produzir algum bem direto para si mesmas, indica como funciona a cabeça da estrela, como ela não consegue dissociar um ato dos interesses que podem existir por trás. Fica a impressão de que elogios sempre carregam segundas intenções, e, mais do que dizer algo sobre Channing, isso diz muito sobre Eve Harrington (Anne Baxter).

A idolatria que ela nutre por Margo durante boa parte do filme é a mesma que faz as pessoas baterem palmas muito depois de as cortinas do teatro baixarem. Há algo por trás. No caso da idólatra, no entanto, tais interesses levantam questões sobre o próprio atuar, já que sua pose e seus segredos a levam a criar uma personagem inteiramente nova. Há uma poção de cenas que, além de fazer paralelos entre o fingimento do teatro e o da vida real, ainda mostram como estrelas conquistam, na acepção mais bélica da palavra, sua carreira. Os admiradores são como que uma consequência dessa luta, logo, fica claro que a derrocada está inclusa nas obrigações da ascensão. Mesmo assim, Mankiewicz consegue diferenciar Eve de Margo desde o começo, mostrando que as semelhanças são ou artificiais ou, mais notadamente, superficiais, em uma primeira análise.

As diferenças são tão grandes que num dos momentos-chave da trama um acontecimento bombástico cai por terra por causa de uma decisão surpreendente de Channing, que nunca poderia ser tomada por Harrington – até onde sua personagem é desenvolvida. No entanto, a qualidade cíclica do roteiro deixa o passado da veterana escondido, e acena para um círculo vicioso de ambições de estrelato. Assim, as diferenças que podem ser traçadas entre as duas são imediatas, não querendo dizer, exatamente, que suas índoles e atitudes sempre foram diferentes. A única certeza é a diferença de ambições (e, como causa e consequência, de idade) das duas mulheres durante o período que o enredo cobre. Por mais que as tramoias de Eve destoem da simples arrogância de Margo – que, aliás, denota falta de autoconfiança –, nada impede que a personagem de Davis tenha, também, tramado para subir na vida. Afinal, ela vai empalidecendo ao longo da história, a ponto de se tornar apenas uma citação num discurso – se ela vampirizou um ídolo, é claro que este será prontamente esquecido. No final, o nome que fica é Eve Harrington – que se transforma numa deturpação violenta do “nome artístico” –, e ele já carrega a grandiosidade e a iminente queda que Margo Channing viveu.
10,0