terça-feira, 7 de abril de 2009

A felicidade dá a cara a tapa

As protagonistas de Mike Leigh costumam soar agradáveis para as outras pessoas. Em Vera Drake, Vera era o arquétipo da velhinha simpática e afável. Em Segredos e Mentiras, Cynthia Rose tratava todos como “darling”. E, nesse Simplesmente Feliz, Leigh talvez vá ainda mais longe nessa tendência, com uma mulher que anda com sua arma de sorrisos engatilhada onde quer que vá. Pauline – Poppy – soa, desde o início, como uma pessoa que quer projetar sua alegria para os outros. A questão da personalidade, no entanto, não é simples assim, pois ela é um tipo de pessoa pouco usual, e soa deslocada em virtude dessa posição sempre “pra cima”. Não parece natural, trocando em miúdos.

Mas Leigh percebe isso de pronto, e logo no começo do filme mostra a protagonista e algumas amigas bêbadas e/ou drogadas, rindo copiosamente daquelas coisas que só bêbados e/ou drogados riem. Do pouco que já foi visto, Poppy já demonstra diferenças entre a condição alterada e a natural – algo reforçado pela cena seguinte, que a coloca de volta ao mundo sóbrio. Aquela é a personagem em seu dia-a-dia, e, ao longo da narrativa, fica claro que a mulher tem as mesmas nuances que qualquer um.

Confiando no trunfo axiomático de Sally Hawkins, Leigh permite que, em conversas e encontros sociais, Poppy demonstre sutilíssimas diferenças de tratamento, soando um pouco mais solta e escancarada com alguns colegas, e mais contida quando a companhia muda – tudo isso, no entanto, com naturalidade que denota inconsciência em relação a tais mudanças. Enquanto confecciona uma personagem cuja heterodoxa felicidade chama a atenção, Hawkins se volta para esses detalhes sutis, entregando uma personagem cheia de vida e complexidade. Notável, por exemplo, como a imagem de alegria é confundida com irresponsabilidade, ao que várias cenas vão derrubando esse erro: por mais lúdicas que sejam suas aulas, ela tem controle profissional sobre os alunos, como a subtrama do garoto violento destaca; embora comece caricaturizando a professora de flamenco, em pouco tempo ela sabe os passos melhor que qualquer uma da classe; e, mais ainda, seu linguajar é entoado com uma voz fina, infantilizada, mas as pequenas pérolas que solta traem qualquer tipo de ingenuidade que queira ser atribuída à sua personalidade (“No, not one sausage”).

Mais louvável ainda, o roteiro não tenta “explicar” o que levou Poppy a ter uma visão tão positiva da vida, implicando que esse sempre foi seu jeito. Não é algo definido, como a cena do mendigo, em que ela realmente compreende o comportamento e as não-revelações do morador de rua, deixa claro: ela pode ser assim desde sempre, ou pode ter mudado o jeito de encarar as coisas em algum ponto da vida. A incerteza é o que torna tudo mais fascinante. Pode haver uma resposta ou não, e esse é o tipo de vagueza que torna a busca pelo passado fútil – uma grande demonstração de habilidade por parte de Leigh.

No entanto, despido para uma linha narrativa central, o filme é sobre a relação de Poppy e Scott. As aulas de direção, filmadas por uma câmera “escondida” que granula a imagem para dar uma qualidade documental, ausente no resto do filme, são momentos em que a personagem de Hawkins ganha novas dimensões. Essa estética de documentário parece irônica, pois não estamos diante de um encontro com a vida real (tampouco Scott vive nela), como fica implícito – Scott é apenas como a protagonista se encontra com seu oposto. Ela já nos é familiar, mas é tão repentina na vida de Scott quanto ele o é para ela e para o espectador, uma chocante presença de rispidez num filme realmente alegre – uma reação que Leigh constrói de forma a causar sincero estranhamento, numa interessante visão do personagem.

E o engrandecimento se dá graças aos efeitos que o instrutor causa em Pauline, que vai se tornando mais sisuda ao longo do tempo, por ver que não consegue dialogar com o homem vestindo sua personalidade real, que, a esse ponto, já é indissociável da alegre mulher. Marsan, que evita os olhos da aluna a todo custo, consegue construir emoção no desagradável Scott, justificando a pena que Poppy sente dele e tornando-o humano mesmo quando, aparentemente, reage mal ao que ela diz a ele. “Aparentemente” pois não se pode negar outros tipos de visão sobre a postura do personagem, mesmo que se reaja a ele como a uma pessoa de “verdade” – e isso só torna a obra ainda mais genial.

Por isso, talvez, a cena do filme seja aquela em que ela, após uma aula no mínimo tensa, vê um cachorro e seu dono passando a seu lado, e solta um “Olá, cãozinho”. É o primeiro momento em que ela admite, mesmo que inconscientemente, que as relações interpessoais são consideravelmente penosas, a ponto de achar um cão uma companhia mais promissora. Mas longe de ser pessimista, o filme não se abala pela presença pesarosa de uma pessoa estranha como Scott, e não perde o eixo de estranheza positiva produzido para Poppy. Tem dias em que cachorros são as melhores opções de companhia, mas Poppy é sempre uma boa escolha. É só ir ao cinema.

9,5

Através de um espelho esfumaçado

Fazer de um filme um símbolo não é fácil. Quando esse símbolo precisa retratar uma pluralidade de qualquer tipo, torna-se ainda mais difícil – não que não haja pluralidade em muitos assuntos, mas O Visitante parte dela para tecer sua bandeira ideológica. A intenção era mostrar New York como a gigantesca metrópole que é, mas uma metrópole povoada de culturas, etnias e outras bagagens de nacionalidades distintas. A questão é: ela está mesmo povoada de outros tipos de pessoas?

Em vários momentos, o protagonista Walter se encontra em “contato” com elementos estrangeiros: a culinária chinesa que come na janta, a música italiana que ouve, o instrumento japonês que é tocado no metrô, e a companhia diária de uma senegalense e um sírio. E, mesmo no último caso, ele não vivencia ou aprende muito da etnia de cada um, optando por se relacionar com ambos através da boa e velha relação humana, a pura e simples, destituída de cultura ou preconceitos. E isso faz sentido especialmente pela natureza fechada de Walter, e pela estranheza de encontrá-los vivendo em seu apartamento – não haveria um costume étnico ou regional possível de o impressionar além desse choque.

A mulher que compra a pulseira de Zainab, por outro lado, tem o comportamento que muitos têm quando dão de cara com elementos de outro tipo de civilização. Embora simpática, tanto no filme quanto aparentaria numa situação real, fica claro que a aproximação é nula. Ela continua a 8000 quilômetros de qualquer tipo de familiaridade com Zainab ou com a cultura que está, sem bagagem alguma, comprando. O tema da imigração ilegal é muito pertinente, pois trata do assunto da recepção estrangeira tão bem quanto a cena citada.

A visão de New York como um lugar de multiplicidade demográfica é factual, mas a relação do sistema Norte-americano com esses variados tipos de pessoas é abordado sem ilusões aqui: são bem-vindas as bijuterias de Zainab, o som de Tarek, a comida dos chineses, a música dos japoneses apenas porque isso dá a exata imagem que iniciou o parágrafo. É no afã de soar democrática e global que NY aceita essas lascas inúteis de cultura, é nessas condições que o portador de tal “cultura” (lê-se, numa tradução honesta: “coisas exóticas”) tem o green card não-oficial, uma máscara que o Estado torna disponível por interesses próprios. No entanto, toda ilusão é destruída, e, com ela, o pacto, em que o indivíduo mais fraco é punido por usar a máscara.

Num entrelaçamento sólido, a presença do protagonista é usada de forma brilhante: é seu reconhecimento humano que cria laços com os muçulmanos, tanto que a ética e os valores étnicos só entram no conjunto de preocupações de Walter quando Tarek, o amigo, está em apuros por causa deles. Além disso, o personagem do excepcional Richard Jenkins aprende, por iniciativa própria, a tocar o djembê (tambor) do amigo – algo que faz sem interesse pelo lado exótico, e sim por sincera vontade. A mensagem é clara: os americanos se apoderam do que os estrangeiros trazem, e Walter o faz com intensidade bem maior que o normal, mas isso não cria um encontro de culturas, e sim uma disparidade esquisita, colada pelo afeto humano – vide a cena final.

Com tamanha complexidade no tema das etnias e conceitos de nação, uma determinada escolha impede que o filme vá ainda mais longe. A questão da distância entre as culturas que habitam a Maçã ganha contornos fortes com Zainab, e nesse momento, abre-se um caminho dramatúrgico riquíssimo, em que a relação com Walter e a discussão ganhariam profundidade muito bem-vinda, mas o roteiro escolhe sabotar essa possibilidade em prol da grande virada do filme. Por conseguinte, Walter e Zainab se distanciam, num grande desperdício de temas e personagens. E apesar disso, e de alguns momentos que querem explicar e expor mais do que é necessário e apropriado, a dramaturgia é beneficiada por dois elementos bem azeitados do filme.

Enquanto o roteiro consegue sair do lugar-comum de frases de efeito e impactos gratuitos, com as palavras desajeitadas do protagonista e até mesmo uma bela cena com a mãe de Tarek e um advogado, a montagem é sábia ao focar seus personagens nos momentos certos, inclusive cortando reações de Walter quando elas não interessam à cena – pois não é raro que o ator principal sempre termine uma cena, seja por ter a última fala, ou porque sua reação é pressuposta importante já de antemão. E não citar a força da cena do aeroporto, coerente com a brevidade dos encontros internacionais entre pessoas, seria um crime.

Sobriedade também sobra para a trilha belíssima de Jan A.P. Kaczmarek, que é sábia por incluir o djembê apenas nos momentos certos, evitando, inclusive, que o alegre instrumento entre nos momentos mais melancólicos – a base é o piano, que ganha força como escolha musical por ecoar narrativamente. O olho estético de McCarthy também faz maravilhas, encontrando o equilíbrio nos planos e conseguindo capturar a “pluralidade” novaiorquina com o mesmo tom cético de seu roteiro. Pois a pergunta que fica (especialmente pelo fato de o final ser tematicamente aberto) é clara: os Norte-americanos merecem essa fachada multicultural, mesmo que composta de fragmentos ilusórios? Talvez apenas os que podem ser chamados de humanos, como Walter.

8,0