terça-feira, 7 de abril de 2009

Através de um espelho esfumaçado

Fazer de um filme um símbolo não é fácil. Quando esse símbolo precisa retratar uma pluralidade de qualquer tipo, torna-se ainda mais difícil – não que não haja pluralidade em muitos assuntos, mas O Visitante parte dela para tecer sua bandeira ideológica. A intenção era mostrar New York como a gigantesca metrópole que é, mas uma metrópole povoada de culturas, etnias e outras bagagens de nacionalidades distintas. A questão é: ela está mesmo povoada de outros tipos de pessoas?

Em vários momentos, o protagonista Walter se encontra em “contato” com elementos estrangeiros: a culinária chinesa que come na janta, a música italiana que ouve, o instrumento japonês que é tocado no metrô, e a companhia diária de uma senegalense e um sírio. E, mesmo no último caso, ele não vivencia ou aprende muito da etnia de cada um, optando por se relacionar com ambos através da boa e velha relação humana, a pura e simples, destituída de cultura ou preconceitos. E isso faz sentido especialmente pela natureza fechada de Walter, e pela estranheza de encontrá-los vivendo em seu apartamento – não haveria um costume étnico ou regional possível de o impressionar além desse choque.

A mulher que compra a pulseira de Zainab, por outro lado, tem o comportamento que muitos têm quando dão de cara com elementos de outro tipo de civilização. Embora simpática, tanto no filme quanto aparentaria numa situação real, fica claro que a aproximação é nula. Ela continua a 8000 quilômetros de qualquer tipo de familiaridade com Zainab ou com a cultura que está, sem bagagem alguma, comprando. O tema da imigração ilegal é muito pertinente, pois trata do assunto da recepção estrangeira tão bem quanto a cena citada.

A visão de New York como um lugar de multiplicidade demográfica é factual, mas a relação do sistema Norte-americano com esses variados tipos de pessoas é abordado sem ilusões aqui: são bem-vindas as bijuterias de Zainab, o som de Tarek, a comida dos chineses, a música dos japoneses apenas porque isso dá a exata imagem que iniciou o parágrafo. É no afã de soar democrática e global que NY aceita essas lascas inúteis de cultura, é nessas condições que o portador de tal “cultura” (lê-se, numa tradução honesta: “coisas exóticas”) tem o green card não-oficial, uma máscara que o Estado torna disponível por interesses próprios. No entanto, toda ilusão é destruída, e, com ela, o pacto, em que o indivíduo mais fraco é punido por usar a máscara.

Num entrelaçamento sólido, a presença do protagonista é usada de forma brilhante: é seu reconhecimento humano que cria laços com os muçulmanos, tanto que a ética e os valores étnicos só entram no conjunto de preocupações de Walter quando Tarek, o amigo, está em apuros por causa deles. Além disso, o personagem do excepcional Richard Jenkins aprende, por iniciativa própria, a tocar o djembê (tambor) do amigo – algo que faz sem interesse pelo lado exótico, e sim por sincera vontade. A mensagem é clara: os americanos se apoderam do que os estrangeiros trazem, e Walter o faz com intensidade bem maior que o normal, mas isso não cria um encontro de culturas, e sim uma disparidade esquisita, colada pelo afeto humano – vide a cena final.

Com tamanha complexidade no tema das etnias e conceitos de nação, uma determinada escolha impede que o filme vá ainda mais longe. A questão da distância entre as culturas que habitam a Maçã ganha contornos fortes com Zainab, e nesse momento, abre-se um caminho dramatúrgico riquíssimo, em que a relação com Walter e a discussão ganhariam profundidade muito bem-vinda, mas o roteiro escolhe sabotar essa possibilidade em prol da grande virada do filme. Por conseguinte, Walter e Zainab se distanciam, num grande desperdício de temas e personagens. E apesar disso, e de alguns momentos que querem explicar e expor mais do que é necessário e apropriado, a dramaturgia é beneficiada por dois elementos bem azeitados do filme.

Enquanto o roteiro consegue sair do lugar-comum de frases de efeito e impactos gratuitos, com as palavras desajeitadas do protagonista e até mesmo uma bela cena com a mãe de Tarek e um advogado, a montagem é sábia ao focar seus personagens nos momentos certos, inclusive cortando reações de Walter quando elas não interessam à cena – pois não é raro que o ator principal sempre termine uma cena, seja por ter a última fala, ou porque sua reação é pressuposta importante já de antemão. E não citar a força da cena do aeroporto, coerente com a brevidade dos encontros internacionais entre pessoas, seria um crime.

Sobriedade também sobra para a trilha belíssima de Jan A.P. Kaczmarek, que é sábia por incluir o djembê apenas nos momentos certos, evitando, inclusive, que o alegre instrumento entre nos momentos mais melancólicos – a base é o piano, que ganha força como escolha musical por ecoar narrativamente. O olho estético de McCarthy também faz maravilhas, encontrando o equilíbrio nos planos e conseguindo capturar a “pluralidade” novaiorquina com o mesmo tom cético de seu roteiro. Pois a pergunta que fica (especialmente pelo fato de o final ser tematicamente aberto) é clara: os Norte-americanos merecem essa fachada multicultural, mesmo que composta de fragmentos ilusórios? Talvez apenas os que podem ser chamados de humanos, como Walter.

8,0

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