sexta-feira, 14 de novembro de 2008

誰も知らない - Ninguém Pode Saber

Esse sensível filme japonês, sensação no Festival de Cannes, merece o alarde que fez e merece ainda mais uma conferida. Exige paciência a trajetória dos 4 irmãos, pois os eventos se desenrolam em uma passagem de tempo pouco formal, em que meses se passam sem uma constância temporal e sem o rigor de deixar isso claro sempre. Curiosamente, isso é o que causa ainda mais impacto, numa ocasional, quase sempre displiscente citação do tempo que se passou. Esse filme não é sobre o longo sofrimento, é como que um retrato da vida de crianças que passam por uma situação tão tristemente comum no Japão. A direção de arte, magnífica e sutil, que trata de criar uma história que ate as elipses constantes, de forma a não deixar claro o que aconteceu, e sim as conseqüências - um empilhamento de lixo, de problemas, de tristezas.

Evitando uma abordagem demasiada trágica, o diretor Hirokazu Koreeda se foca na rotina das crianças, com resultados incríveis. Aquelas pequenas pessoas, que viam na sufocante jornada dentro de malas uma diversão, acabam se acostumando com a situação que vivem da mesma forma. Com o tempo, porém, fica claro que a gravidade do abandono os atinge (assim como outros eventos), e a luz da infância fraqueja em seus pobres rostos. Tudo isso gravita em volta de Akira (Yûya Yagira), o mais velho, que se torna automaticamente o responsável pelos irmãos mais novos. Yagira encarna o jovem com um rigor impressionante, valendo-se da direção precisa de Koreeda para expressar, com o olhar, todo o temor pela responsabilidade que caiu em suas mãos - algo que o roteiro demonstra através de inúmeras pequenezes do dia-a-dia. A atuação do garoto se funde com o próprio personagem, uma mistura de seriedade adulta com temor infantil, talvez na interpretação mirim mais impressionante dos últimos tempos.

E os outros pequenos também cumprem seu papel formidavelmente, nunca parecendo mais (ou menos) infantis do que devem ser, criando um ambiente intimista e envolvente de familiaridade. E é aí que a tragédia se insinua, sem violência, quase que sob os panos. O sofrimento não vem de eventos, nem mesmo do abandono: ele se torna, dolorosamente, parte da difícil existência das crianças, pois eles podiam suportar muitas coisas (uma mãe ausente, a prisão no apartamento, a viagem dentro das malas), e quando fica difícil suportar algo, quer dizer que até mesmo a alegria intrínseca da infância foi varrida pelas dificuldades. Aí a costumeira seriedade de Akira ganha outro sentido, engrandecendo ainda mais sua performance. A trilha sonora, a princípio orgânica e quase imperceptível, acaba ganhando força, apresentando-se com força no final e deixando claro seu tom triste, sutil porém pesaroso, algo perfeito para o filme. A fotografia também mostra o clima correto do filme, culminando numa bela cena: Akira e a amiga Saki, depois de uma experiência desoladora, descem uma ponte inclinada com o sol nascendo ao fundo. Quanto mais eles descem, mais o sol se esconde, mas ele está subindo ao céu, por isso nunca o vemos inteiro, mas nunca deixamos de vê-lo. É a parca, presente porém dolorosa esperança na qual vivem as crianças, um tipo de acomodação imposta, que dói - e muito.

A única tragédia real do filme é na verdade um evento corriqueiro, que poderia ter sido reparado ou até mesmo evitado pela presença de um adulto ali, e isso talvez torne o acontecimento ainda mais triste - uma agonia reforçada pelo brilhante simbolismo do aeroporto. Acertando ainda na caracterização da mãe, interpretada por You com uma irresponsável simpatia (o que não deixa de ser algo desprezível para uma figura materna) e com uma voz violentamente rouca, ao mesmo tempo que afável, "Ninguém Pode saber" se mostra um conto terno e realista, bruto e simbólico, da vida como ela é. É o Japão contando histórias, algo que os orientais fazem de forma única.
Nota 10.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Climas (Iklimler)

O filme anterior de Nuri Bilge Ceylan parece mais radical ainda que o seguinte "Three Monkeys". Apostando num jogo de cena simples, mas significativo, o diretor parece encontrar sua razão de ser nos intermináveis closes no rosto dos personagens (os principais interpretados por ele mesmo e sua esposa, Ebru), apenas murais petrificados do turbilhão de emoções que passa dentro de suas mentes. A comparação da mulher com uma pilastra é perfeita, pois ela é isso, um totem, seu rosto apenas uma escultura bela entalhada em mármore sólido. Dentro dela ocorrem muitas coisas, e Nuri apenas mostra isso, sem explicar o que exatamente se passa. Os olhos aqui têm o sentido de janelas da alma, não no sentido Ralph Fiennes de atuar, mas os personagens fitam tanto o vazio, e uns aos outros, que a conexão é feita da mesma forma.

É difícil manter essa linha de atuação inabalável, mas o elenco consegue, com expressões absolutamente vazias (excetuando-se a voluptuosa Serap e a sensualidade com que seu olhar e o de Isa (Nuri) se conectam). O estilo das atuações é estranho, e ocasionalmente artificial, como a cena em que Bahar em que Bahar (Ebru) chora sem mover um músculo da face - pura revolta autoral, não dá para chamar isso de direção de ator. Mas normalmente funciona, pois o filme se foca nas reflexões pessoais, todas fortemente influenciadas pelo clima (o metereológico mesmo) e absolutamente internas. Ver "Climas" é como assistir a uma pessoa pensar na vida, é como fitar um rosto estático enquanto infinitos questionamentos trafegam por trás dos olhos dela. Chato pra caralho, e sublime, pois o apuro estético de Ceylan, embora também seja aqui e ali artificial e auto-indulgente, cria imagens assombrosas, e suas técnicas de filmagem injetam profundidade e inteligência ao filme.
Nota 8.

Os Últimos Passos de um Homem

Estarrecedor. Há muitos jogos poderosos nesse filme, que não falha em ajuntar suas partes para formar um todo bem-feito. O duelo de interpretações de Sarandon e Penn é o principal, através de diálogos inteligentes, uma direção sutil e sensível (uma cena chuvosa, dentro da prisão, que NÃO é um momento bombástico? A-do-rei) e duas interpretações de cair o queixo. Penn cria um retrato marcante do condenado, dando-lhe apenas os traços de humanidade que o roteiro (sabiamente) permite a Matt, sempre caminhando a passos lentos para o inevitável. Sarandon, por outro lado, cria uma figura igualmente trágica mas não por isso fraca, oferecendo fibra e dignidade à personagem - algo imprescindível para o filme. No entanto, ela sofre com seu excesso de bondade, apresentando-se solícita e vulnerável inclusive quando isso a coloca em situações humilhantes.

E isso não muda. Essa não é uma história de revolução pessoal. Há uma moderação maravilhosa no tocante às mudanças que ambos os personagens sofrem com a convivência mútua, e tampouco espere um final surpreendente: não há nada de inesperado na conclusão, e isso é o diálogo perfeito com a inevitável execução de Matt. O outro jogo intenso do filme é entre uma perspectiva e outra, pois somos manipulados, sim, mas por ambos os lados, dando um equilíbrio moral que resulta do desequilíbrio emocional - o resultado, arrebatador, são lágrimas constantes, seja a fonte do pranto o assassino ou a vítima. Matt é visto como uma vítima também (a cena que evita a comparação com Jesus Cristo é genial), mas isso não é moral ou ético, é meramente humano. Uma pessoa com uma data de morte marcada sofre e não é errado sentir pena, e mais ainda de Matt, que revela algo mortificante à conselheira, algo que não o redime de seus crimes, mas que comprova a dimensão da pena que ele pagou. Contando ainda com uma fotografia precisa de Roger Deakins e uma trilha sonora magnífica, pontuada pelo incrível Eddie Vedder, este filme é um primor moral, humano e cinematográfico.

Nota 9.

Leonera

Situado numa 'leonera', instituição carcerária em que mulheres grávidas são mantidas desde a prisão até certa idade do filho, “Leonera” conta a história de Julia. No que a dela difere da das outras, que também incluem crimes, partos durante a pena e sofrimento? O foco está no personagem por alimentar e conduzir a narrativa de forma brilhante. O filme funciona graças a um tripé composto pela trama em si, pelo desenvolvimento de Julia e por Martina Gusman, em estado de graça como a protagonista. Embora o plot trate da linha temporal e dos fatos, não falta excelência nessas funções menos ambiciosas. Embora caminhe de situação para situação, às vezes com elipses de muitos meses, o roteiro nunca falha em dar fluidez e unidade ao relato. Os saltos cronológicos não são amenizados, como fica claro na cena em que a câmera foca uma parede apenas para que a barriga de Julia, muito maior que minutos antes, irrompa antes mesmo da mulher. Os cortes secos (às vezes seguidos de uma tela negra) também servem para denotar passagem de tempo, e os eventos mostrados pelo filme tornam tão necessário esse deslocamento temporal (eventos como penosos trâmites judiciais, a proximidade com Marta, o crescimento do filho Tomás) que é exatamente deles que se originam as elipses.

Por outro lado, a atuação de Gusman se torna crucial para cimentar esse ritmo do filme, usando sua fabulosa profundidade dramática para complementar a narrativa. Seu rosto é a força-motriz da performance, pois seus grandes olhos parecem estar sempre à beira ou recém saídos de prantos. É a forma sutil e maravilhosa de a atriz mostrar para o espectador que, embora o filme foque em certos momentos em detrimento de outros, não foi mais fácil viver o que não foi mostrado. E com as elipses adotadas, o roteiro dá o feedback necessário para que o sofrimento da protagonista não seja nunca subestimado. Genial. Similarmente, a relação de Julia com sua condição é explorada de forma cuidadosa, mas não arrastada. Se num primeiro momento ela rejeita (uma rejeição quase plácida) os beijos de Marta, num segundo, ela já aceita as carícias da mulher como um meio de conseguir contato e ternura em meio a um ambiente instável e degradante, já que, mesmo em cenas mais amenas, o horror de ter de carregar ou criar um filho numa prisão está latente. O tom do filme é coerente com esse incômodo subjetivo, pois evita uma abordagem que poderia ter sido muito mais pesada para usar de sutilezas em seu lugar – embora a insuportável cena dos socos na barriga sejam um acerto também. Esse bom uso tonal é notável no primeiro dia de escola de Tomás, em que Trapero impõe uma canção de roda à cena: isso não é só um gracejo, como também uma permissão dramatúrgica, um momento de felicidade que Julia parece não conseguir saborear.

No entanto, o tom sutil e azeitado do filme, assim como o ocasional sofrimento e a uniforme amargura da protagonista, são deixados de lado de repente. Em um dado momento, Julia deixa de ser uma lamentadora e se torna uma lutadora (em todos os sentidos), com a maternidade aflorando em sua vida de forma feroz, selvagem, devastadora. O roteiro dá sinais dessa mudança brusca? Pouquíssimos para se levar em conta. Então essa quebra de tom é por demais discrepante. Ou não? Na grande jogada do filme, uma jogada em que atriz, diretor e roteirista se unem com força explosiva, “Leonera” cria uma das quebras de tom mais interessantes dos últimos tempos. Somos levados a crer que a discrepância para com a protagonista ocorre quando ela começa a espernear e cometer atos violentos... mas há o assassinato. O assassinato não resolvido. Sem nenhum tipo de explicação direta, o roteiro dá um vislumbre do que realmente ocorreu na fatídica cena do crime. A quebra dramatúrgica não ocorreu com aquela visita da mãe de Julia, e sim quando esta entrou "em torpor. Remetemos" st="on">em torpor. Remetemos à cena em que ela chora, em submissão à triste realidade, ao lembrar do crime do qual fez parte. É a submissão que vai liderar a maior parte do filme, que continua, inclusive, nos primeiros dias com Tomás, e até nos encontros com Ramiro.

Ramiro deixa mais dúvidas em relação ao crime (assim como o personagem do advogado, explorado de forma inteligentíssima), que, afinal, importa menos como mistério do que como esboço da personalidade de Julia. Talvez a real culpa, o real responsável pelo crime, seja irrisório. A serventia dramática do assassinato é dar visibilidade para uma faceta de Julia que está latente desde o começo do filme – algo reforçado pelo fato de as primeiras cenas serem meramente visões do cotidiano da mulher, algo que pouco revela sobre ela – pois, independente de quem pegou a faca ou não, sabemos que Julia agiu no mesmo temperamento com que invocou uma rebelião em sua prisão. Sua relação com a mãe, por sinal, apenas deixa sua hostilidade velada ainda mais em evidência – ao que a talentosíssima Elli Medeiros mostra todas as maneiras, igualmente distantes, pelas quais ela trata a filha. Santoro faz um papel também excelente como Ramiro, traçando um adequado paralelo (os olhos vermelhos) com Julia e fornecendo uma ternura que prontamente justifica a postura diferenciada da mulher. Laura García, fechando o impecável elenco, é de uma ternura bruta, impaciente, e torna-se uma sutil pista para a personalidade real da protagonista – não à toa, elas vão cada vez mais vencendo as diferenças.

Como nem tudo é perfeito, é importante citar que a surpresa final é mais previsível que ganhar meia de aniversário, e acaba apontando um pouquinho na direção de uma maternidade romântica, num tom condescendente que não encontra muita ressonância no resto do filme – resumindo, um final mal concatenado. Mas isso não tira o brilhantismo desse primoroso trabalho cinematográfico, em que a aliança entre todos os elementos que compõem um filme é perfeita. E não falta rigor regencial, pois os planos espetacualres (note a cena de natal, em que os fogos de artifício se elevam de detrás dos muros da prisão), as câmeras inspiradíssimas e a sabedoria cênica de Trapero não precisam nem ser procuradas.
Nota 9,5.

Vicky Cristina Barcelona

Woody Allen, o maior estudioso de personagens neuróticos da história do Cinema, aparece agora com mais uma pesquisa cuidadosa e dedicada. Em um filme nunca menos que histérico, histérico até nas sutilezas, Allen vai fundo no tema, sem medo de focar-se na neurose de cada um dos personagens. Os outros assuntos são abordados de modo igualmente detalhado, mas como conseqüências desse que é a grande força-motriz do cinema do baixinho. A estrutura temporal da projeção é pensada sabiamente, sempre focando no personagem que está com mais neuroses, criando uma alternância que só aumenta o interesse nas criaturas bizarramente reais da história. O jeito que Allen usa para conversar com o espectador é conciso e afiado, um modo paradoxalmente crítico e conivente, e a formação de um envolvimento e um diálogo interior é automático. Talvez ele seja um dos autores mais pessoais do cinema, comparável, na literatura, a Charles Bukowski, tamanha a familiaridade com os temas.

O diferencial não é esse, no entanto, pois o diretor é famoso por esses exatos motivos. O diferencial é como, a partir de um traço absolutamente histérico de personalidade, ele consegue criar um leque de possibilidades que engrandece cada um dos personagens. Vicky, a certinha anti-impulsividade, recebe a visita de sentimentos que lhe são irracionais, e o modo como o filme constantemente infere o quão saborosa seria uma mudança na vida da mulher é o principal pilar da inspirada performance de Rebecca Hall. Já para Cristina, histericamente liberal a princípio, as coisas mudam de figura, conferindo-lhe um ar errático ao longo do tempo, tirando-a da felicidade por motivos desconhecidos, talvez a própria mania do ser humano de não conseguir conviver com felicidade. Enquanto Cristina não percebe isso, e acha que simplesmente não quer a relação que encontra com Juan Antonio, Vicky sabe bem onde não está a felicidade, mas tem medo de buscar algo maior. É a balada de duas mulheres que vivem sob amarras, e um ode às escolhas alternativas – e é onde Penélope Cruz surge com intensidade.

Sua Maria Elena vem como um teste à personagem de Cristina, uma confrontação do estilo de vida que a americana teoricamente anseia. De forma nada sutil, Allen vai explorando o advento de Maria Elena na vida de Cristina, primeiro deixando-a irritada, e depois evoluindo a uma relação azeitada, tanto do ponto de vista amoroso, pois é um affair libertador, quanto do ponto de vista narrativo, pois é muito bem construído e sensual à beça. Maria Elena ganha força maior ainda quando Cristina perde o equilíbrio, dando pluridimensionalidade à relação: por mais bonita e redonda que seja, a fragilidade vem à tona quando Cristina hesita. Quando Vicky se aventura mais uma vez naquela loucura, o resultado é violento e o mais histérico de todo o filme, com o roteiro dizendo muito sobre a personagem. Maria Elena é a catalisadora da maioria dos conflitos do filme, e Penélope Cruz encarna a demente com tamanha garra que ela consegue transpor para a tela toda a importância narrativa de sua personagem.

Contando ainda com um sensualíssimo Javier Bardem (esse cara é o maior psicopata do cinema recente? Meu Deus), uma trilha sonora charmosa ao extremo e uma fotografia que só ressalta e beleza de Barcelona, que surge muito mais romântica até que Paris, “Vicky Cristina Barcelona” é um primoroso retorno à forma do Woody Allen gênio das comédias românticas.

Nota 9.

Quantum of Solace

Depois do style da série do espião britânico, com o memorável “Cassino Royale”, houve uma cisão. Ele não era mais o mesmo: foi adicionada outra camada narrativa ao personagem, que, pelo bem e pelo mal, tornou-se mais rico e mais profundo. “Quantum of Solace” dá continuidade à idéia concebida pelo filme anterior, adotando um formato igualmente conceitual. Enquanto o segundo tinha pouca ação, para dar mais foco à construção de personagem, o primeiro surge como uma orgia de adrenalina incessante, o que não deixa de ser uma opção perigosa, pois perder o fio da meada em meio a tantas perseguições é uma pandemia do cinemão atual. Mas o roteiro, escrito a seis mãos, não decepciona.

Conseguindo a façanha de, numa das mais curtas fitas de Bond, incluir pelo menos três elementos distintos, o texto faz jus a tudo que fez o agente famoso, e o algo-mais que “Cassino Royale” injetou à série. De um lado temos as cenas de ação, que provavelmente representam considerável tempo de projeção, e de outro, temos a trama político-econômica envolvendo Dominic Greene (Mathieu Almaric). Se no início o fluxo de informações consegue prender a atenção, mais tarde, boa parte da trama é explicada tintin por tintin, deixando inclusive os mais lerdos (lê-se: “eu”) totalmente a par do que está acontecendo, talvez para mostrar como o roteiro é redondinho (e quadradinho). Para os que têm uma capacidade um pouco mais afiada, porém, o didatismo deve ser a palavra-chave, pois não há nada que o filme não explique de forma segura. Ok, a trama é interessantinha, tem boas sacadas e, vai, ganha pontos por usar de assuntos ambientais, políticos e econômicos sem se exacerbar no comentário. É só um elemento do plot, nada mais, e assim é tratado.

A construção do personagem, por outro lado, apenas pontilha a narrativa, e a grande surpresa é que mesmo com um foco bem menor, James ganhe uma profundidade similar à do primeiro filme da retomada. Através de pequenos diálogos (inclusive alguns bastante trôpegos) Bond vai tomando forma, limpando-se de manchas e se dilapidando ao longo de sua experiência, fazendo o terceiro filme de Craig, talvez, o mais esperado – para onde ele vai agora, sem estancar nem retroceder? Para os impacientes (“Ele não é Bond”), há inclusive a esperada cena do martíni (menos óbvia do que eu esperava), que dá uma deixa para muitas próximas – aqueles que querem ver o agente em sua glória completa vão ter que esperar um pouco, mas, até agora, essa espera vale a pena. Para finalizar, claro, há a belíssima referência a Goldfinger, que até os fãs mais cegos têm de encarar como uma escolha condescendente e absolutamente respeitosa ao clássico personagem.
Forster, mais uma vez, mostra uma eficiência ocasional, com uma direção de atores eficiente e uma porção de planos interessantes. Infelizmente, ele cai em uma redundância triste ao mostrar os efeitos da seca na Bolívia assim que Bond e sua pussycat descobrem o plano desértico de Greene. Mas seu grande problema é a condução de cenas adrenalinescas. Talvez intimidado pela presença do celebrado Dan Bradley para coreografar a ação, Marc opta por câmeras tremidas, e põe tudo a perder. Lembrando o sofrível “Controle Absoluto”, algumas seqüências perdem força graças a essa síndrome de Quero-Ser-Greengrass, pois tudo fica confuso e aleatório num diretor que, em seus melhores momentos, usa câmeras fluidas e suaves (vide as boas cenas aéreas do ruim “O Caçador de Pipas”). Bradley não teria seu trabalho sabotado por um trabalho de câmera mais limpo, e o enorme pecado de Forster é não perceber isso. Mas as set pieces não são desprovidas de intensidade: as duas primeiras perseguições são bastante empolgantes, mesmo sem uma visibilidade adequada (a nos telhados de Siena é uma exceção, pois é bem filmada), e mesmo as piores cenas têm o ponto positivo de destituir de glamour os acidentes, deixando mortos, feridos, capotados e explodidos para trás. Mais uma vez, a ação se apresenta conceitual – note como, na cena inicial, a única capotagem filmada com atenção é uma que atrapalha o caminho de Bond na pista de baixo.

O elenco continua bom, e talvez até mais, pois Olga Kurylenko, a Camille, empresta um charme e uma emoção que, curiosamente, deixam Eva Green e sua Vesper para trás. O francês Almaric dá uma imponência formal a Greene, usando a ameaça de formas sutis e quase distantes, já que ele raramente suja suas mãos – e é uma ótima escolha do ator dar gritinhos patéticos quando se envolve em uma cena de ação de verdade, porque o herói está claramente inapto para lutar contra Oddjobs da vida, e porque o vilão tem uma motivação diferente na trama . A Dama Dench dá um foco imprescindível a M, fazendo suas poucas cenas momentos marcantes, entendendo o quão importante sua personagem é para Bond, e vice-versa. Passando pelo caricato Joaquín Cosio como o General Medrano (provavelmente influenciado pelo marido violento de “A Favorita”), o filme encontra seu eixo em Craig. Ele faz Bond vibrar, e mais, faz o espectador vibrar junto, não só se entregando de corpo às pancadarias, como de alma às emoções mais internas do agente, mas de modo fechado. No maior momento dramático do filme, ele denota seu sofrimento com um mero apertar de olhos, totalmente destituído de emoção – apenas um traço do que ele está sentindo. Talvez ainda mais brutal que no filme anterior, o protagonista passa de brutamontes para fanático, fervoroso, mudando a abordagem do personagem de modo brilhante.

Com suas falhas corriqueiras e qualidades corriqueiras, o filme alcança um saldo até que positivo, pois apresenta algumas qualidades que sobressaem e o elevam um pouquinho da trivialidade.
Nota 6,5.