quinta-feira, 9 de julho de 2009

2

Tanto "Je t’aime... moi non plus” quanto Serge Gainsbourg são conhecidos há muito tempo. A canção que o compositor francês cantou em 1969 com Jane Birkin causou um escândalo famoso, por ser explicitamente erótica. À época da estreia do filme de mesmo título, dirigido por Gainsbourg, a polêmica aumentou. Paixão Selvagem, como é conhecido no Brasil, é absolutamente condizente com a personalidade de seu diretor. A história do caminhoneiro gay Krassky (Joe Dallesandro) que se envolve com a garçonete andrógina Johnny (papel de Birkin) é sensual, ousada e despudorada.

O erotismo era parte da vida e da obra do artista, e é sempre contemplado e celebrado, exaltado e naturalizado, seja na voz macia e murmurante ouvida na canção, seja na nudez constante da atriz e de seu parceiro em cena. O conteúdo do filme é anunciado na simples menção do nome do diretor. Um filme dirigido por um homem famoso por sua sexualidade é totalmente auto-explicativo. Logo, quando o espectador dá de cara com nus frontais, masculinos e femininos, cenas de sexo explícito, brigas violentas e assassinatos passionais, está simplesmente vendo o que pagou para ver.

É como o velho flatulento que cuida do bar de Johnny. Não que ele não seja uma caricatura do grotesco, mas, em certo momento, ele lembra a garota que ela sabia de seus problemas com gases. O aviso é dado como lembrete à personagem, e, mesmo sendo novidade para o espectador, este sabe que é algo já estipulado. Acontece o mesmo com as cenas “polêmicas”: nos créditos, no mais tardar, todos na sala de cinema sabem o que verão. Não é uma posição defensiva, e sim um sutil ataque à hipocrisia de quem possa criticar o filme por motivos moralistas.

Isso dito, e sendo a mais interessante discussão presente no filme, há questões mais superficiais. A beleza estética, particularmente, pois não tem grande ressonância. É apenas uma boa seleção de enquadramentos e movimentos de câmera relativamente belos, pois raramente exprimem algo além de apuro visual vazio. As exceções são algumas cenas de sexo, sensuais e íntimas, que ganham ainda mais potência com os planos de Gainsbourg, e um par de seqüências em que o lixo é visto como algo sublime. Além desses seletos momentos, a estética da imundice se confunde com a estética da limpeza sem constância, e, mesmo quando se equilibram, não dizem nada muito profundo.
7,0

Kristin Scott Thomas tem a chance de realizar um vasto exercício de atuação no filme de Phillip Claudel, Há quanto tempo que te amo. A obra escrita e dirigida por Claudel mostra o retorno de Juliette (Thomas) depois de 15 anos de prisão. Ela vai morar com a irmã, Léa (Elsa Zylberstein), mas a adaptação é difícil, especialmente levando em conta o que ela fez para ser encarcerada. Uma boa escolha feita logo de cara foi evitar o mistério sobre a natureza do crime. Ele é revelado relativamente cedo, e de forma direta, seca, numa entrevista de emprego. Aí reside o grande trunfo do roteiro: o enfoque é dado às reações de todos em relação a Juliette.

Nesse sentido, a construção é fenomenal. Personagens inteiros são criados com uma grande variedade de funções, mas todos dizem algo sobre a protagonista, antes de tudo. Um excelente exemplo é Fauré (Fréderic Pierrot), que é trabalhado com bastante sutileza. Em determinado momento, ele conta para Juliette seus anseios, desejos e sentimentos. Depois de ser ouvido, ele pergunta como a interlocutora está, e a cena acaba. É um dos momentos mais tocantes do filme, pois é quando fica explícito que sua importância é não se preocupar demais com Juliette.

O único que tem uma reação similar é o pai de Luc, marido de Léa. Ele vive num cômodo, e, por ter perdido a fala depois de um AVC, só lê e se comunica através de bilhetes. É o primeiro personagem com quem a protagonista tenta contato, por um motivo simples: ele não falará coisas erradas. Quando fala com o idoso, ela sempre recebe um sorriso radiante de volta, e os motivos para tal atitude podem ser vários, mas não importam. O que importa é que ele é uma companhia inofensiva, que respeita completamente o espaço de Juliette.

Outra cena inteligente, que na verdade introduz ao espectador o conceito da obra, ocorre no carro, quando Léa está levando a irmã mais velha para casa pela primeira vez. A caçula conta as novidades da vida, mas com uma apreensão que fica óbvia em olhares, voz e postura tensos. Thomas não facilita, é fria a tudo, pois está no começo de sua reabilitação ao mundo exterior (e construção dramatúrgica) e se encontra inacessível em todos os sentidos. Quando Léa começa a se desculpar pela distância, num raro caso de diálogo expositivo com estofo, a situação é mais complexa. O enfoque ainda é no efeito que Juliette causa nos outros, mas, nesse caso, se trata do efeito causado nela antes de mais nada. Um ato, uma ausência ou uma palavra causam uma mudança na protagonista, e é aí, talvez, que é apresentada a grande força motriz do filme.

Como há de ser, a ideia se perde em certos momentos. Se a cena citada acima apresenta um discurso elaborado e o personagem de Fauré é explorado sutilmente, vários outros excertos do roteiro pecam em ambos os quesitos. Num contexto mais geral, Luc e sua filha com Léa, a pequena Lys, têm um valor pobre. As preocupações paternas do primeiro e a curiosidade infantil da segunda soam artificiais. Se o diretor provou que sabe usar as entrelinhas, fica difícil aceitar que as coisas sejam expostas de forma tão esquemática e mastigadas como o são, via de regra, com esses dois personagens. Há exceções, como a cena do zoológico, que não fica apenas na exposição dos dilemas morais da convivência com uma ex-criminosa.

O intelectual no jantar, apesar de também jogar questionamentos de forma pouco orgânica, dá outra prova de habilidade de Claudel. A resposta de Juliette, seca e breve, é a mesma que ela já usou antes, e o resultado não podia ser mais diferente. Através de um cuidadoso planejamento narrativo, cada personagem entende e julga a informação de um modo particular. Na mesma cena, Michel descobre a veracidade da revelação, mas o que ela representa tem um valor distinto do que tem para Luc, Léa ou a própria Juliette. A quantidade de personagens secundários e terciários enriquece profundamente a trama, e evidencia a dedicação e inteligência do texto.

Toda essa construção, no entanto, tem como foco a protagonista, e Thomas é a chave para o sucesso absoluto do arco dramático de Juliette. A atriz dá atenção a tudo, desde os detalhes minuciosos de seu rosto até elementos mais gritantes, como a hesitação física ao contato humano. O mais notável, porém, é como ela consegue confeccionar uma pose sem se projetar. Ela mostra com o corpo, com o olhar, com um pathos danoso, que Juliette conhece seu poder de afetar os outros. Não é uma postura de imposição, e a impossibilidade de se livrar dessa aura nefasta mostra quanta melancolia a inglesa imprime à sua performance.

Isso leva ao desfecho, que tem uma qualidade de esperança que pode soar puramente esquemática – o que não deixa de ser, já que a revelação parte de um incidente patético, e não do interior de um dos personagens. O que torna esse um caso raro em que a convenção ganha força é o eco com a proposta narrativa inicial. Quando Léa força Juliette a contar tudo (olhando-a firmemente nos olhos, num dos grandes momentos de Zylberstein), ela está mostrando que sua reação, pela primeira vez, é de compreensão e apoio emocional. O resultado é, de fato, horrivelmente piegas e expositivo, mas conclui de forma interessante o retrato de uma mulher formada pelo que causa às pessoas a seu redor. É uma pena que essa história tenha sido confeccionada com uma apoteose impossível de ser somente boa.
8,0

X

Há uma relativa dose de complexidade na idéia de Obrigado por Fumar. Em sua proposta básica, o filme quer mostrar como funcionam os bastidores das empresas de cigarros, e para isso adota um tom satírico de humor negro. Essa escolha não ridiculariza os personagens que defendem a propaganda do produto, colocando-os, pelo contrário, como os piadistas que fazem graça das vítimas Ao separar os que caçoam dos “fracos e oprimidos” e os próprios, a comédia politicamente incorreta se estabelece, e serve para causar uma sensação de desconforto no espectador que ri. Afinal, rir de uma criança com câncer o leva a pensar que não está certo achar graça em tal piada – logo, o moralismo se forma quase que organicamente, estabelecendo os caçoadores como pessoas más ou deturpadas.

E essa visão é reforçada por causa de uma coerentíssima subtração do filme: embora vários personagens fumem, em momento algum eles são mostrados acendendo ou bafejando um cigarro. A mensagem é clara: é uma análise do marketing do fumo, mas não inclui uma cena sequer de fumo, o que estabelece o posicionamento dos realizadores. E isso está bem longe de ser um problema. Mesmo definindo bem sua moral, o roteiro instiga o trabalho mental através de questionamentos interessantíssimos, e desenvolve seu tema através de perguntas, fatos e respostas que tornam a discussão muito mais rica. O formato crítico não se impõe ao espectador de forma a fazer uma lavagem cerebral, uma atitude sóbria que requer esforço por parte do cineasta.

No entanto, há uma clara casca indie na direção de Jason Reitman (até agora, um indie incurável, para o bem e para o mal), seja através das intervenções visuais, cênicas e narrativas, seja através das micro-digressões que apresentam certos personagens. Enquanto cativa pelo formato “menos convencional”, Reitman acaba tornando seu filme uma peça de propaganda, um anúncio da interessante estética do filme independente – que está altamente em voga há pelo menos dois anos, ou seja, foi uma estratégia de sucesso. E embora soe desonesta, a tática é um eco perfeito da proposta: é uma auto-indulgente e divertida peça de merchandising anti-fumo. Não se pode acusar Reitman de falta de ironia, absolutamente. A anti-propaganda não é novidade, nem mesmo no cinema, mas o ataque é muito bem azeitado e se justifica com esse posicionamento deliciosamente irônico. E o melhor: pode-se sair do filme e ainda assim apoiar o direito à divulgação da Marlboro, da Parliament e da Free. Enquanto ser um lobista requer flexibilidade moral, Obrigado por Fumar flexibilidade cinematográfica.
8,0


O que faz Häxan sobreviver ao tempo é mais que suas questões e seu tema milenar. É a sensação anacrônica que o faz uma obra de constante fascínio. Cada vez que é visto, não importando quantos anos atrás foi seu lançamento, tem-se o claro retrato de uma época, de uma mentalidade e de uma postura perante o passado. E o fato de o filme exatamente fazer um retrato de um passado mais posterior ainda causa uma ilusão semelhante à de olhar o reflexo de um espelho, com centenas de imagens se apequenando na distância.

Embora inegável como peça histórica, o filme preserva seus erros, como um didatismo muito exacerbado tanto em algumas imagens quanto em alguns dos letreiros. Não obstante, é incrível o poder que algumas das imagens ainda causam (há cenas verdadeiramente macabras em meio às marcantes aparições demoníacas) e a qualidade do texto mostrado na tela (não raro, o filme traz um senso de humor fino), e a seleção de composições, algumas clássicas peças de música erudita, tornam o efeito mais poderoso ainda.

Mas o mais magnífico mesmo é o que o filme faz pensar, não o que foi planejado por Benjamin Christensen, mas os pensamentos formados graças à defasagem de tempo. Encontrei-me pensando em como o filme se assemelha a um documentário informativo, especialmente do canal Discovery Channel, no modo como faz reconstituições de cenas do passado, como coloca questões e como as responde através de estudos recentes. E pensar que o que já foi Cinema (de alta qualidade) hoje em dia é visto na forma de programas de televisão é uma ponderação riquíssima sobre a história do Audiovisual como um todo.
9,0

Festim Diabólico começa sem rodeios, mostrando o assassinato-mote da trama. A partir daí, Hitchcock cria, com o auxílio de uma teatralidade ungida de grande força narrativa, um exercício de tensão de ranger os dentes. Sua direção cênica é primorosa, usando a inovadora forma de filmagem para realçar momentos de grande suspense, resolvendo de formas brilhantes a incapacidade da câmera de ter a abrangência de um palco inteiro – ele mantém os diálogos no compasso adotado para todas as cenas (ou seja, em frenética ebulição) e filma movimentos e ações absurdamente tensos, como a inesquecível cena da Srta. Wilson tirando a “mesa”. Sua câmera, no entanto, vai além dessas perspicácias, conseguindo uma fluidez impecável pelo espaço e utilizando de forma dinâmica os longos planos. E enquanto temos um exercício cênico de cair o queixo, o texto de Arthur Laurents se encarrega de brincar com o espectador, seja através do crescendo de suspense, do humor negro afiadíssimo ou de toques macabros dignos de uma encarnação de E. A. Poe.

O elenco faz as vezes de “rebanho” com intensidade, com Stewart deslizando sombriamente pelo cenário, Dall acertando nas variadas emoções, apenas parcialmente veladas, do narcisista assassino (do sutil ao espalhafatoso, do confiante ao temeroso, do cômico ao austero) e uma performance contagiantemente irritadiça de Granger. Merece menção honrosa o austeríssimo Hardwicke, cuja severa ética serve como prelúdio para a conclusão. Não que o longo monólogo de Stewart seja exatamente o que se espera de um filme tão moralmente despojado quanto seus protagonista, mas isso não chega a perturbar muito a harmonia do filme.

Mas ainda mais fascinante que assistir à obra de Hitchcock é ver em seguida Muito Além de Festim Diabólico, um documentário que esmiúça uma conturbada produção. E o mais interessante não são as câmeras coloridas gigantescas ou o esforço tremendo para coreografar o cenário durante os longos takes: o processo de adaptação e roteirização de Festim Diabólico só faz o filme ser mais apreciado. E não é por puxa-saquismo: o roteirista deixa claro que achou várias escolhas do diretor erradas, como revelar que, sim, havia um corpo no baú, em vez de deixar a dúvida. Vendo por esse lado, é empolgante reparar que Hitchcock troca o mistério e a curiosidade do espectador por uma tensão excruciante, advinda exatamente da certeza de que o corpo está lá. E isso é coerente com os cortes que têm de ser feitos às costas dos atores, demonstrando que o diretor escolheu uma abertura maior em relação a suas intenções para que os resultados fossem honestamente apreciados – a proposta só se revela mais redonda ao ver que Laurents critica tais cortes. E não pára por aí, já que o quase invisível homossexualismo, que é evocado por milissegundos em uma ou outra cena, é confirmado no documentário como tema importante do texto e como um tabu monumental durante a filmagem. O dvd da Coleção Hitchcock garante essas duas experiências, que, em seu conjunto, tornam o Cinema mais interessante ainda.
9,5

Embora seja um assunto constantemente abordado no cinema e totalmente universal, a família raramente é usada para construir um filme tão potente quanto Segredos e Mentiras. Na bela obra de Leigh, preparada do modo brilhante e humano que é a marca registrada do inglês, a universalidade do tema ganha uma dimensão tão brilhante que é difícil não entrar em reflexão bastante pessoal sobre como se dá a relação do indivíduo com os familiares. Cena após cena de trabalho cênico honesto e genial, a narrativa consegue tocar em várias questões familiares, algumas bastante difíceis, tanto no quesito narrativo quanto no da sensibilidade. A relação entre amizade e parentesco é explorado com propriedade, sem medo de inferir que essas duas coisas, assim como o contato, a intimidade e mesmo o amor são elementos que não têm nenhuma obrigação de constarem na definição de parente, ao que a dor é vista como um fator unificador e intrínseco à família. A trilha acompanha essa visão abrangente, usando de formais melodias tristes como símbolo das concepções prévias sobre o assunto, ao que os instrumentos usados firmam uma postura muito menos convencional. Embora opte por uma conclusão mais esperançosa, Leigh deixa seus questionamentos expostos, e os lança de forma crua e realista – e o melhor, de forma sincera.

Sem essa sinceridade, o filme não seria nada do que é, e essa palavra-chave se estende a todos os membros do inspirado elenco. Em seu primeiro trabalho, Jean-Baptiste se entrega de forma natural ao mundo alienígena que é a instituição familiar (dada sua aparente distância com a família antiga), dando a tiques e expressões faciais um sentido de abertura total, em que se pode ver, com intimidade, seu personagem gradualmente se acostumando com a noção mais nua e crua da vida entre parentes. Embora tenha poucos momentos de expressividade, já que Roxanne é distante e fechada, Rushbrook consegue em poucas cenas transbordar emoções intensas, como a cena em que ela percebe a união da família. Mas os destaques são, mesmo, Blethyn, com sotaque e voz perfeitos, vivendo o passado com incalculável sensibilidade e explorando o presente com esperança e temor, e Spall, que não tem como experiência apenas o passado e os brutais conflitos entre entes amados, mas também dezenas de contatos passageiros com as pessoas que fotografa, onde claramente conhece facetas alheias e acumula melancólica sabedoria sobre o demônio familiar. É essa melancolia que Spall captura em seu olhar e postura, retendo tudo para si até as incríveis cenas ao fim da projeção. Quem nunca sentiu algo demonstrado ou discutido por esse filme que jogue a primeira pedra.
9,0

Courtney Hunt faz de Rio Congelado um contraponto climático (mas, em partes, paralelo) ao desértico mundo de Onde os fracos não tem vez, ao menos na fotografia, que encontra nuances nas paisagens inóspitas. Mas se, por um lado, a obra desorientadora dos Coen ressalta o pessimismo através de personagens alegóricos, Hunt busca um tom muito mais esperançoso em que a humanidade é o pilar principal. Longe de ser um ode, a diretora envereda por personagens difíceis de julgar, tendo sempre em vista aquela sensibilidade que predomina no mundo real, aquela difícil de reconhecer ou aceitar. Não parece que Ray faz o que faz por amor, já que ela é fria e seca, bruta com pessoas, e não raro surpreende o espectador que espera uma mulher mais "idealizada" e não está preparado para o tipo de humano caleijado que protagoniza o filme - é na falta de sensibilidade que vemos quando esta existe. Assim o filme é uma via de duas mãos, mostrando sutilmente, em explosões de violência raras e sóbrias, emoções disfarçadas por um tiro repentino ou por uma dura carranca.

Somos obrigados a ver as facetas de todos os personagens, um trunfo numa grande obra que confia totalmente nos pilares humanos que roteirista, diretora e atores criam com tanto esmero. Porque não basta que McDermott surja surpreendente como um adolescente pronto, em teoria, para virar homem se sua família precisar. Acompanhamos Leo numa das performances mais arrebatadoras do ano (2008 ou 2009, até onde posso dizer), uma verdadeira vitrine de humanidade em que o rosto não comunica só pelo que vemos e a voz não comunica só pelo que ouvimos. O poder das nuances salta da tela em momentos de simplicidade sincera (sua voz se torna eufórica por um segundo ao achar 5 dólares), de rispidez siginificativa ("Estou falando sério, querido") e até mesmo de sentimentalismo despistado ("Ele morreu e você o deu vida"), tudo graças a uma intérprete que sabe exatamente como entoar cada palavra.

E mesmo que Misty Upham só esteja aceitável num retrato um tanto raso da melancólica (e um tanto rasa) história de Lila, ainda resta a força da mensagem nada explícita de que a humanidade não é exatamente redentora nem faz tudo dar certo: o realismo do altruísmo familiar, e do sentimentalismo meramente cabível no mundo real, ressalta que não há julgamentos fáceis nas arbitrariedades da vida e que boas intenções podem se acabar em bons e maus resultados ao mesmo tempo. Aquelas pequenas figuras se movimentando na monumental paisagem de inverno fazem diferença, podendo fazer coisas certas mesmo que o gelo já tenha se infiltrado por seus calos e esfriado seus espíritos. É no desespero que se encontra a união. E um filme que se envereda por caminhos tão tortuosos para chegar numa máxima já batida pode ser criticado, mas não por usar de saídas fáceis.
8,5


Tido por muitos como o primeiro filme ambientalista da história, Corrida Silenciosa provavelmente soou, na época, tão esquisito para o mundo quanto Lowell soa para seus colegas de espaçonave. Muito antes de Shyamalan, Emmerich, Gore e muitos mais entrarem na onda, precisamente 30 anos antes, o diretor Douglas Trumbull já fazia um filme poderoso (e muito melhor) sobre o tema - situando sua narrativa num futuro em que essa preocupação era perfeitamente cabível e conseguindo, sem uma única tomada da Terra, evocar horror só pela possibilidade de um mundo destituído de verde. As naves, belíssimas, que flutuam pelo espaço carregando gigantescos domos-estufa funcionam em favor do meio-ambiente, e essa visão quase romântica das possibilidades dos avanços tencnológicos dita um filme que não poderia ter menos a ver com a obra que tornou seu diretor famoso, 2001.

O então supervisor de efeitos visuais fotográficos seguiu no Cinema para dirigir seu primeiro longa, e, num acordo da Universal que deu à luz outros "indies" (entre eles, Loucuras de Verão), conseguiu dirigir com liberdade. Isso não significava apenas ter os dedos do estúdio distantes, mas também aprender, pois ele diz que foi Corrida Silenciosa seu teste como diretor. E o resultado é fascinante. Com câmeras precisas, muitas vezes dinâmicas, e singelos truques estéticos, Trumbull dá personalidade ao filme, além de conseguir uma simpatia necessária para o roteiro. Efeitos e direção de arte fantásticos ajudam a criar um ambiente relativamente leve, especialmente quando os pequenos dróides (um impressionante efeito por si só) estão na tela. São os robôs que mostram, em várias cenas divertidas e afáveis, como o homem, a natureza e a tecnologia podem coexistir - e é esperto do roteiro perceber como isso é utópico. À vontade, Dern ainda funciona bem, mesmo com um diretor preocupadíssimo em mostrar bastante o rosto de seu ator - e mesmo que exagere às vezes, entrega uma atuação ótima. Também a trilha tem seus momentos ruins, mas nada sério.
8,5

Viver
Talvez seja um tanto desonesto focar nos contextos políticos da obra de Kurosawa. Desonesto com Watanabe, no caso, pois isso faria o espectador agir da mesma forma que os bêbados no funeral, saudando uma mensagem que podia nem estar presente nos ideais do protagonista. Não se pode negar (e o diretor nunca nega) que há profundos significados políticos, culturais e sociais em sua obra: a ineficiência da buracracia (explorada no começo por uma montagem hilária), os prós e contras da modernidade e da tradição, a recusa desta em detrimento da mentalidade ocidentalizada, o distanciamento entre familiares causado pelas mudanças sociais, o afã por descobrir ideologias e o conformismo.

Entretanto, Watanabe, em toda a sua humanidade, é apolítico. Tampouco é possível dizer que ele desenvolveu uma ideologia, uma vez que a grande virada em sua vida foi tão chocante e natural quanto a descoberta de seu câncer. Foi a morte que lhe trouxe vida, e não se pode falar de ideologia sem idealizar algo, e ainda menos quando uma atitude vem da emoção pura. E mais, como aderir a um conjunto de idéias se ele se originou de uma situação-limite como a sentença de morte do protagonista? É o extremismo de sua situação que o fez pensar e sentir a vida, e quem o usar como inspiração dificilmente poderá usufruir de sua convicção. Aqui, vários filmes de superação vêm à mente, e poucos se assemelham a Viver simplesmente por adotarem um positivismo exacerbado.

O tom do filme de Kurosawa é perfeito, indo direto no âmago da melancolia trágica sem passar batido pelos momentos de sincera felicidade. O retrato dos momentos finais de Watanabe é coerente graças à determinação dupla: de não se entregar totalmente à tragédia nem à felicidade idealizada. E sobram cenas potentes para cada nuance do momento: a canção "A vida é curta", a revelação dos apelidos, as andanças embriagadas e a discussão à mesa do chá, só para citar algumas. Ajuda a presença de um ator que explora muito bem o personagem.

Shimura consegue se deformar em diferentes estados de espírito, mantendo uma linha de melancolia sempre visível em sua brava atuação. Também notável é como sua subserviência se mantém em momentos decisivos, utilizando com sutileza a idéia do poder da humildade e do peso da convenção. Com o protagonista alheio a quase tudo, Kurosawa cria cenas brilhantes, como a do aniversário e a já icônica cena do balanço. É esse destacamento, essa entrega ao âmago de sua alma que torna Watanabe um personagem tão memorável - e é pela presença do mal dentro de si (o câncer) que essa jornada se torna tão bela quanto pesarosa.

O domínio narrativo também impressiona: o diretor usa uma adequada narração burocrática, instigantes fraturas temporais e dá força ao epílogo por dispersá-lo em memórias e impressões - muitas equivocadas - que só ressaltam a presença pós-vida do protagonista. A mensagem que os personagens do funeral deixam é aterradora: talvez viver não seja algo passível de se fazer em "vida". Só com a proximidade da morte seríamos capazes de saber o valor que a vida tem. E a honestidade que Viver alcança ao não forçar mensagens acolhedoras (sacrificando o velho carpe diem em prol do personagem) só reforça a condição de obra-prima inimitável.
10,0

Vi, para repousar, um clássico mindfuck: Os Doze Macacos. Não dá pra relaxar muito, já que a trama não para por um minuto e a direção soberba de Terry Gilliam não facilita em nada, nem no tom cambiante nem no visual. . Além disso, há Willis em um de seus melhores papéis (brucutu, ok, mas brucutu amalucado? Excelente escalação!), Pitt bem como louco varrido (num papel que escora alguns dos temas do filme) e Stowe dedicadíssima, utilizando-se de todas as possibilidades dramáticas de seu personagem. Destaque para a brilhante trilha sonora e para uma direção de arte que não permite nem um mísero cenário de "normalidade" completa. A edição, por outro lado, ressalta as surpresas da trama, e isso soa forçado e didático demais. Não obstante, o roteiro é um primor.

O entrelaçamento das ideias de viagem no tempo e loucura é simplesmente perfeita. A insanidade tocaia cada minuto de projeção, dando uma sensação de iminente desorientação como fruto da viagem no tempo. Esta, por outro lado, torna visível a presença de mais de uma realidade, e lentamente influi na mente dos personagens. Ao passo que a subversão do típico transporte pelo tempo causa ainda mais confusão, e várias possibilidades se criam - se a dimensão não fosse única, se o tempo não fosse cíclico, se a viagem no tempo não estivesse amalgamada com o tempo em si, os personagens não seriam loucos? Mas Os Doze Macacos não se propõe a estudar os "e se", pois tudo faz parte de uma formação sólida e imutável.

Assim, não só é um exercício narrativo interessante, é também metalinguístico: a eternidade e estaticidade da linha temporal se relacionada com a eternidade imutabilidade do filme. Com isso, a experiência se torna única, mas nunca simples ou palatável, mesmo que nada possa ser mudado. Um retrato brutal da inescapável loucura da raça humana.
9,0

Vi Três Reis. Mas porra, que sessão! O ótimo roteiro e a excelente direção equilibram o humor negro e a seriedade de um jeito que não parece possível. Se o começo é uma aventura irresponsável cheia de ironias sobre a guerra, o enredo engrossa e a crítica também, em set-pieces bem boladas e bem realizadas (o caminhão na aldeia, o final na fronteira) e um tom de sátira que não se acovarda perante cenas muito pesadas. O diretor, dotado de um surpreendente olho para ação, acompanha tudo com uma câmera enérgica e intrusiva, e também sabe dar um passo para trás ao criar enquadramentos bonitos e abrangentes. A fotografia, de cores fortes, ajuda nesse quesito.

Outros valores, como uma rápida mas clara edição, o som e a trilha sonora, dão mais camadas ao hiper-realismo que é a meta da obra, terminando de criar um ambiente de exageros que emprestam pungência à sátira da Guerra do Golfo. A trama abarca poderosas ironias, atacando abertamente as falhas desastrosas de todos os governos envolvidos no conflito. O foco é nos perdedores, nos que vivem de acordo com o sistema, e o pandemônio causado pelo comando oficial é reforçado pela punição do pensamento altruísta - que é, teoricamente, o que importa.

Os personagens, pegos nesse impasse, são muito bem defendidos por Wahlberg, sensacional, e pelo breve papel de Taghmaoui (o interrogador), que dá profundidade e sinceridade a suas falas. Jonze também está bem, e se Clooney e Ice Cube não adicionam absolutamente nada a seus personagens, isso apenas enfraquece arcos narrativos que já têm sua relevância. Dunn, por outro lado, encarna bem a visão (idealizada, sim) do jornalismo como elemento mediador de vários lados de um acontecimento ao mesmo tempo, como o final atesta. Com sua abordagem paralela, mas distinta, o filme se prova algo além da realidade: é uma realidade pintada com tintas berrantes, explorada a fundo em cada um de seus elementos. E isso é característica de grande Cinema.
9,0

Hoje assisti meu segundo Godard (com muito medo): O Pequeno Soldado. Gostei ainda mais que de Acossado. É desagradável que nem o diabo, seja como narrativa, seja como imagem. É picotado em alguns momentos e encorpado em outros. Mas o que se sobressai é como o filme não toma partido nas ideologias que desfilam pela trama. O que acontece na vida de Bruno é solto, episódico, em uma série de sequências encenadas, filmadas e editadas de forma ágil. Elas representam a liberdade, e, mais especificamente, a liberdade de ideiais e pensamentos políticos.

Não por acaso, um longo plano é usado no monólogo poderoso de Bruno sobre sua rejeição aos ideários políticos, por causa da simplicidade de suas impressões e gostos pessoais. O comprimento da cena parece conotar um valor de ideologia a seu discurso, como se ser contra um conunto de ideias fosse um ideal. Dois outros momentos mostram o inverso. Quando ele fotografa Veronica, a ação é esparsa, destroncada em narrações em off, comentários dos dois personagens, planos americanos, fechados, muito fechados, música no ambiente, silêncio logo depois, e Bruno não só convive bem com essas mudanças: ele faz parte ativa delas. Isso leva a um diálogo com Jacques:

- O que você está pensando?
- Não sei.
- Devia saber.
Bruno abre a boca para falar, e para.
- O que ia dizendo?
- Nada.
- Diga!
- Mudei de ideia.

No breve instante em que tira o cigarro da boca e enche os pulmões, ele deixa de acreditar no que ia dizer, e não o diz. Não só isso já oferece a personalidade do protagonista cedo na narrativa, como parece dialogar com toda a estética, assumidamente caótica, do filme. A intenção de Godard não existia já formada - nem como rigor artístico, e muito menos como compromisso político -, e vai se metamorfoseando a cada minuto. Assim, como Bruno, ele se afirma destituído de ideologias, pela simples incapacidade de se atrelar a qualquer uma e segui-la fielmente. Isso diminuiria seu Cinema.
9,0

Transformers é um filme-pipoca relativamente bem azeitado. Mesmo com decupagem e montagem torturantes, ainda havia um senso de ação e de divertimento. A tensão e o mistério eram apenas o granulado no brigadeiro: criam a ilusão de dar mais sabor à receita. Michael Bay sabia muito bem que esses elementos apenas construíam o que era necessário na trama, e que, sem isso, a diversão seria prejudicada. Problemas sérios apareciam, por outro lado, através de estereótipos ofensivos e breves cenas e diálogos de moral pavorosa, mostrando racismo perante todo tipo de estrangeiro e uma solenidade vergonhosa ao tratar do exército.

Isso leva, claro, à continuação. Vingança dos Derrotados continua escancarando uma posição lamentável a certos grupos. Em uma tomada curtíssima, vemos um robô atravessando um prédio inteiro numa barulhenta explosão, ao que um chinês continua calmamente a comer sua refeição-tipicamente-chinesa. Bay até espera o estardalhaço passar para fazer tocar uma canção chinesa genérica. É possível escolher a visão ofensiva dentre uma vasta gama de possibilidades. A cena pode indicar que esse povo não tem preocupação com nada; que eles são acomodados com o barulho e a destruição; que são pessoas de comportamento autômato, inócuo e basicamente ignorante; pode-se até dizer que Bay está chamando os chineses de surdos e que a música deles é ruim.

Até aí, tudo bem. Nada que não fosse uma praga já no filme anterior, mesmo se formos contar casos berrantes, como os transformers gêmeos e o escandaloso hacker latino. O problema é que o diretor perde totalmente o fio da meada que havia conduzido moderadamente bem dois anos antes. Já estava claro que a ofensa pode ser feita em 2 minutos – caso do indiano que atrapalha serviços militares urgentes. Também não havia dúvida de que as coisas funcionam de outro modo com a diversão, que precisa ser montada com habilidade ao longo de todo o filme. Esse equilíbrio fez a batalha na cidade, uma aula de como não editar uma cena de ação, muito mais tolerável, por realmente expandir o tamanho da luta. Aqui tudo muda. Já fomos introduzidos ao mundo dos Cybertronianos, então a adrenalina “pode” tomar a liderança da projeção.

Isso é notável na introdução em Xangai. Embora o espaço da ação tenha dimensões imensas, a excitação é quase nula. Rapidamente um robô 4 vezes maior que Optimus Prime é derrotado. E o estrago que ele deixa? É monstruoso, mas não fica bem claro o que está sendo destruído. As grandiosas partículas de destruição funcionam num trailer, mas, no filme, mesmo a mais impressionante demolição é homogeneizada e perde todo seu poder de impressionar. A culpa é da edição, assim como de toda a lógica da cena: não há tempo algum entre achar o inimigo, revelá-lo, confrontá-lo e vencê-lo, assim, nada leva a nada. A pior escolha foi mostrar uma luta rotineira usando uma criatura muito maior que todas as vistas antes: não há uma escalada de tensão, de adrenalina e nem mesmo de dimensão. Tudo é jogado sem qualquer tipo de dosagem aparente.

Mais tarde, na luta da floresta, um tropeço semelhante. O espaço e os inimigos são trocados rápido demais para criar qualquer tipo de emoção. Há um momento heroico (a medonha trilha sonora diz isso) em que Prime luta com muitos inimigos de uma vez – quantos, é uma incógnita. Poucos segundos antes, não havia qualquer sinal de perigo, mas ele se eleva e supera esse desafio ilusório, arrebentando a cabeça de um robô (que ninguém sabia que estava ali) usando ganchos (que ninguém sabia que ele podia usar). E Megatron, o nêmesis supremo, entra na briga já perdendo feio, o que faz dele um vilão horrivelmente anticlimático. Para finalizar, ele mata o herói robótico, na mais confusa jogada de tensões dos últimos tempos, e Bay quer que isso seja um momento emocionante.

Esse é o exemplo cabal de como ele perde totalmente o controle sobre seu filme, errando até mesmo nas cenas de ação, que não têm contexto, expectativa nem noção de espaço. Assim, o grande preparo para a batalha no deserto é bem-vindo. Mas, logo, fracasso de novo: quando os tiros começam, fica impossível saber quem está lá, quem está de que lado e quem está ganhando. Isso é destruir a base para a relação do espectador com os mocinhos da história – peça-chave de qualquer roteiro derivativo e maniqueísta. E é nesse momento que o pai de Sam solta a frase que define (negativamente) todo o filme:

“Não sei o que está acontecendo, mas temos que correr.”

Talvez esse seja o maior tiro no pé de todos. A frase explicita a opção de Bay: ele abriu mão de construir boas set pieces, de tornar as lutas inteligíveis, de assumir que tudo aquilo é diversão pura, em detrimento da intensidade provinda do caos. Para começar, “Transformers” nunca foi tensão. Qualquer tipo de mistério e segredo da narrativa é mantido apenas para criar deslumbramento mais tarde, e tudo que explode o faz para chamar a atenção. Quando ele diz que quer deixar o espectador tenso, a falha é dupla, pois ocorre no nível da proposta e da realização. Não existe tensão se ela anula a diversão, e ambas são extintas categoricamente nessa desculpa esfarrapada para a tosquíssima filmagem.

Assim, o diretor deixa de ser o pateta viciado em explosões, e se torna um autômato que entrega barulho aleatório de forma automática. Ele perde sua marca, que já era bastante pejorativa, por pura incompetência. Estranhamente, isso faz dele um cineasta ainda pior, pois todos os seus vícios estão presentes, mas totalmente destituídos de força destrutiva. E pior que uma explosão gratuita, é uma explosão gratuita que não destrói nada.
2,5