quarta-feira, 11 de março de 2009

De obra-prima a obra-digna: uma adaptação

No atual mundo dos blockbusters americanos, diretores quase que só se preocupam em fazer filmes cada vez mais frenéticos, explosivos e impressionantes, diretores não têm espaço para provar nada, além da capacidade de filmar a ação de forma bacana. No meio disso, Zack Snyder, revelado por uma fita de zumbis de ritmo invejável, é alguém que tenta fazer diferença em cada produção. Que isso lhe tenha valido a alcunha oportunista (e estúpida) de “visionário” é só mais um sintoma do câncer de Hollywood. Afinal, alguém que individualmente se preocupa com questões um tanto básicas, como provar que existe alguém dirigindo a “obra” a que assistimos, é visto como um revolucionário pós-moderno. O diretor é bem utilizado pela indústria, pois é capaz de injetar ritmo e intensidade em suas produções e terminar com um resultado satisfatoriamente divertido, mesmo que seja basicamente uma longa batalha filmada em velocidades diferentes.

Pesando para Zack está, claro, a inexperiência. Suas boníssimas intenções são constantemente subjugadas pela falta de familiaridade com a área em que atua, resultando em filmes que nem sempre sabem o que mostrar, e ainda menos como mostrar. Em 300, por exemplo, a idéia bacana de mandar a narrativa convencional para o inferno em detrimento de ação desenfreada é frustrada pela sub-trama da Rainha, que, ok, serve para mostrar o papel da mulher em Esparta, mas não faz sentido algum numa sangrenta orgia de adrenalina tão orgulhosamente acéfala. E há o problema das câmeras lentas, que sempre deixam uma dúvida sobre se Snyder realmente sabe como mostrar aquilo que planejou.

O que leva a Watchmen. A história querida do diretor conseguiu uma adaptação quase Sin-City-esca, conservando muito da excepcional trama, para total ganho do filme. Tudo ficou mais expositivo, mais apressado e mais resumido, o que era inevitável e previsível. Muito do que existia no gibi foi transposto de forma idêntica, resultando em uma estranheza óbvia, já que o que pode funcionar em uma mídia pode fatalmente soar mal em outra. Por mais que a cena do incêndio, o resgate de Rorschach e a ida para a Antártida sejam realmente tão rápidas na graphic novel (não lembro se são), isso pula para as telas como um já sintomático vício Hollywoodiano.

Na direção, Zack se torna mais seguro sobre o que mostrar, já que venera a obra de Alan Moore. No entanto, ele não sabe ainda como mostrar. Quando tenta colocar no mesmo enquadramento Dan, sua antiga roupa de Coruja e Laurie, a escolha é adequada, mas é só reparar num detalhe: assim que Dan cita a fantasia, o foco da lente desfoca os atores e foca... sim. Dá pra ficar mais óbvio? Não, mas são muitas nuances de cinza até esse extremo, e Snyder dá de cara com cada uma, vez ou outra, durante a projeção. E aí, ele tenta provar. Muitas coisas. Coisas demais. Tenta provar que sabe lidar com violência usando mais galões de sangue digital que 300 e Madrugada dos Mortos juntos (coerente com a proposta do filme, mas por demais atabalhoada e adolescente); que tem senso de humor com a tola cena “Hallelujah”; que tem um bom gosto musical ao colocar Dylan, Joplin, Nena, Hendrix, Garfunkel e outros na trilha sonora.

E tudo soa esquisito. “99 Luftballons” é uma das faixas mais estapafúrdias para se tocar num jantar nostálgico e pré-romântico, só para, de novo, citar o caso mais extremo – embora profanar a música clássica de A Primeira Noite de um Homem para efeito tão bobo também mereça menção. Para sermos justos, “The Times are A-Changing” serve muito bem aos ótimos créditos iniciais, enquanto a trilha de Koyaanisqatsi, de Glass, torna a origem do Dr. Manhattan de longe a cena mais intensa do filme. Elegante também é a escolha de evocar o passado de todos os ex-colegas do Comediante durante o funeral deste, num ritmo bem azeitado. As narrações em off, agraciadas com as vozes perfeitas de Crudup e Earl Haley, também merecem ser lembradas em meio a tantos problemas.

Curiosamente, o resultado é positivo, mesmo com todas as inconsistências apresentadas, que ainda incluem uma falta de emoção grotesca provinda da pressa da narrativa – algo especialmente forte na segunda metade da projeção, que usou muito bem seu tempo contado origens, e acaba pisando no acelerador bem na trama principal. Com um visual que representa magnificamente as imagens da HQ, desde uma direção de arte minuciosa até um figurino exemplar, da fotografia apurada aos efeitos visuais nunca menos que espetaculares (no sentido técnico e estético), a fidelidade é usada de forma a criar um espetáculo para os olhos. Na parte técnica, ainda, o som funciona em quase todos os aspectos (tirando as composições toscas de Bates), especialmente no tocante às lutas. Falando nisso, é difícil compactuar com alguns movimentos um tanto exagerados durante as pancadarias. No entanto, em vez de rubricar que os vigilantes são pessoas comuns, a escolha foi destacá-los um pouco da realidade, dar um toque extra-ordinário a suas habilidades (isso fica claro quando vemos Ozzymandias fazendo acrobacias muito mais insanas), o que é uma opção estética tanto quanto decidir que Dr. Manhattan deve ser azul.

Embora esteja nas qualidades, o elenco precisa começar com um ressalva: Akerman está pavorosa, tão inexpressiva quanto um ator pode ser. Terminando com ela, sobram os elogios: Gugino está ótima em suas breves cenas (inclusive a tensa seqüência do estupro), acertando as complexas emoções de sua personagem mesmo que o roteiro não tenha muito tempo para elas; Wilson não impressiona nem decepciona, apenas exibindo de notável a uma aparente fragilidade emocional – tanto que suas cenas com Rorschach são as melhores; Goode, apesar de sua quase figuração, cria uma adequada imagem metrossexual de Veidt; Dean Morgan, um dos destaques, tem a exata brutalidade e senso de humor grotesco que o Comediante tem nas páginas, e dita boa parte do clima da narrativa. Porém, em Earl Haley e Crudup residem os trunfos maiores: o primeiro, com uma impostação vocal perfeita e uma aura de mistério comum aos melhores personagens psicopatas, sua presença já intensifica tudo ao redor – e mesmo não sendo agradável, em sua romântica (e distorcida) visão de justiça, sua trajetória é trágica e poderosa; o segundo também tem uma limitação inicial, a postura impassível e os efeitos que compõe sua figura, mas mesmo assim, Crudup, em seus movimentos fluidos e macios (inclusive quando causa mortes violentas), em seu olhar vítreo e em suas expressões quase imperceptíveis, cria um personagem fascinante que responde emocionalmente a suas elaboradas falas.

Para sublinhar e resumir, a escolha de Snyder em explicitar, em certo momento, essa sutileza de Crudup é um sintoma absolutamente previsível de deslumbramento, pois ele já permitira planos cadenciados e atenciosos para a performance do ator – o que pode também soar panfletário na forma em que tenta reforçar uma das qualidades de seu rebento. Sua atitude pública, humilde, perante o excelente final, que foi mudado da HQ, seria muito mais feliz se empregado no ato de dirigir. No final, dá pena criticar tanto um filme de história tão maravilhosa, mas para isso temos a obra original. No Cinema, há mais coisas em jogo, como direção, e é bem aí que Watchmen deixa de ser excelente, caindo para um frio bom, matematicamente mais coerente com a direção ruim e com o texto magnífico.
6,5