sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

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Ai no corida (Império dos Sentidos)
Além do provocativo no uso de cenas de sexo explícito, a obra de Oshima ainda acerta no extremismo de focar apenas as aventuras sexuais do casal, fechando-os numa reclusa rotina de fornicação e impulsos de ciúme doentio. Nagisa encontra nessa patologia sentimental o formato para o roteiro, que cria elipses constantes como se nada houvesse entre um ato sexual e outro, e a direção, que tenta explorar ao máximo o casal, mas acaba caindo numa repetição coerente de câmeras, fotografia e direção de arte. É difícil acompanhar um filme focado apenas consecutivas transas, mas, mesmo não espantando a monotonia, o diretor usa as cenas explícitas para reforçar a escolha narrativa, dando o diferencial que fecha o círculo e alimenta o roteiro - um enriquecimento mútuo, simbiótico. A construção para o pesado final também é muito bem feita, espantando uma possível interpretação da ousada escolha de Nagisa Oshima - a interpretação daquilo como pura pornografia.
Nota 9.

Etz Limon (Lemon Tree)
Sutil, mas ainda assim agradável, é a metonímia (ou seria anti-metonímia?) desse notável filme israelita. Como sua protagonista, o filme é corajoso, mas, enquanto ela o é por causa da inocência, uma falta de noção do tamanho da montanha que está movendo, o filme de Eran Riklis sabe exatamente o que ela está fazendo, e mostra essa trajetória heróica amplamente, por vários viéses. Claro que a visão de que os seres humanos são bons por definição, e que a política, o dinheiro (e de forma velada, a religião) os tornam maus vai contra a pegada onisciente de Riklis, mas ao menos permite uma que vasta gama de personagens, todos com funções narrativas belíssimas, preencham a tela e permita essa visão abrangente da questão.

O elenco não tem uma nota dissonante, com Abbass totalmente entregue às mais simples emoções de Salma; Tavory coerentíssimo, visto por toda as facetas que ele, como um homem público, deve ter; Lipaz-Michael mostrando um tipo de sofrimento estático, apático, numa bela demonstração de como ela tem desejos dissonantes com seu "cargo" (algo que o roteiro ressalta de forma brilhante); e Suliman, para fechar com chave de ouro, se apresenta em uma benevolente, porém corajosíssima solicitude - a cena em que ele faz a proposta da Suprema Corte é filmada de forma heróica, fazendo sentido narrativa e emocionalmente.

Afinal, o filme é tocante, usando de sua simplicidade redutiva (uma grande luta internacional em torno de limoeiros) com efeito surpreendente. Mais envolvente ainda é a bela declaração de Hassam (Kopty, simples e arrebatador), que resume bem a cena final do filme: árvores são pessoas, e por mais que algumas morram e algumas vivam, hemos sempre de lamentar muito pelas que morreram. Não há vida que compense o que não deveria ter morrido. Não é pessimismo, é a verdade do luto (outro tema sutil e lindamente abordado, dado o número de já finados da história). Embora peque aqui e ali no simplismo, o filme se vale de um escopo mais elaborado, via de regra. Não compensa as falhas, mas faz crescer.
Nota 8,5.

Bird Watchers - La terra degli uomini rossi (Terra Vermelha)
O cinema mais interessante do ano é o brasileiro. Fato. Acertando tanto nos nacionais da gema quanto nas co-produções (Leonera, Ensaio sobre a Cegueira), a segunda categoria é agraciada com o espetacular Terra Vermelha - por sinal, é curiosa a relação de títulos estrangeiros, com Observadores de Pássaros em inglês seguido de A Terra dos Homens Vermelhos em italiano.

A começar com um elenco irretocável, o diretor Bechis (que movimentos de câmera belos!) acerta ao empregar uma direção de atores diferente, pois os intérpretes pouco usam seus rostos como recurso dramático. As poucas variações são expandidas pelos olhares profundos e pelos diálogos, que, numa lógica que rima com a tradicional japonesa, exprimem de forma seca e direta o que as faces não se preocupam em oferecer - algo que o maravilhoso desenho de som também ressalta. O roteiro, de Bechis e Bolognesi (do excelente Chega de Saudade), ainda usa de uma dramaturgia ótima, baseada num conceito que permeia o longa em vários níveis: a relação tradição x modernização, pertinentíssima quando se fala de indígenas brasileiros (quem é o Angué?), e resulta em momentos fortes e sublimes.

Derivada dessa, mas ainda mais interessante a meu ver, é a relação colonizador x colono, demonstrada desde o começo através de uma ópera européia, que, numa cena que mostra índios caminhando pela floresta, causa estranhamento - apenas para mostrar o perfeito motivo de seu uso alguns segundos depois. Essa discussão se desdobra em elementos menos óbvios, indo direto ao cerne da questão dos suicídios e criando belos constrastes. Num dos duelos mais estarrecedores do ano, o Moreira (Medeiros, maravilhoso como de costume) dá o seu discurso sobre sua herança cultural, ao que já sabemos que Nádio (Ambrósio Vilhava) o superará. O que ele faz, no entando, supera qualquer tipo de resposta imaginável. Uma das cenas do ano. Encerrando-se de forma sublime, numa daquelas frases finais à la Sangue Negro, o vibrante Osvaldo (Abrísio) mostra-nos quem é o malévolo espírito Angué, na apoteose da relação índio x colonizador. Outra cena difícil de esquecer, e, sendo a terceira só nesse filme, este como um todo marca profundamente.
Nota 9.

Belle de Jour (A Bela da Tarde)
Um daqueles jogos de realidade e fantasia que deixam uma impressão forte, seja pela força da fantasia, seja pela pungência da realidade, e principalmente pela impossibilidade de discernir (sem comprometer o formato do filme) qual é qual. Usando elipses espaciais e temporais de forma quase irônica, com uma intenção desorientadora, o resultado é uma história de partes que formam um todo irregular, cuja absoluta discrepância dão um formato surreal, coerentemente fragmentário à experiência. Estamos num mundo em que sentimos o que a Bela da Tarde vive, mas essas sensações não se derivam somente do que ela vive de fato: seus sonhos enquanto desperta causam sentimentos tão fortes quanto. Deneuve é puro charme e introspeccção, um servindo de contraposto para o outro ao que mergulhamos mais fundo nas viagens mais insanas de sua mente. Com coadjuvantes que parecem estar lá para desorientar mais ainda, o filme explora a relação entre realidade e fantasia ao máximo, incluindo-se aí a câmera de Buñuel, que "parece" ser operada por um fetichista de pés e mãos, e o elegante desenho de som, que sugere muito do que não é mostrado. O figurino de Saint-Laurent, que poderia ficar em segundo plano, consegue, além de ser chique ao extremo e belíssimo, dialogar com a narrativa exatamente por essas qualidades. Um filme de cerne coerente, redondo; mas de superfície irregular, espinhoso.
Nota 10.