segunda-feira, 30 de março de 2009

A prisão perfeita

Atualmente, está em voga o cinemà verité em uma de suas encarnações mais extremistas, resultando em sub-gêneros famosos por exageros baixando o tom para uma frieza policial, na crua e aguda intervenção do realismo em retratos cinematográficos da criminalidade e até mesmo no novíssimo estilo seco da mais esfuziante e comercial franquia do Cinema. E enquanto Gomorra é um exemplo forte e ao mesmo tempo artístico de como essa pequena influência está se dando na produção recente, aquele que se firma como o melhor dessa safra é sem dúvida o brilhante Entre os Muros da Escola.

O filme, através de um roteiro milimetricamente planejado de forma a não parecer que o foi e uma direção que corrobora essa proposta de forma relativamente solta, consegue construir um imaginário ideológico e visual que primam pela abrangência das especificidades. Não há nada parecido com imposição de discussões raciais, sexuais, sociais, étnicas, econômicas ou políticas. Tudo é engendrado para criar um conteúdo de formato irregular, sem linhas narrativas específicas cobrindo cada desentendimento ou discordância temática: uma grande pasta de choques entre pessoas, choques gratuitos e arbitrários que, mesmo formando desavenças duradouras entre os alunos, são vistas apenas nas manifestações em classe, cuja turma – que revela uma conexão externa através de fotos de celular – está notavelmente distante de seu docente. É forte ver como François poda os alunos bem quando uma abertura emocional mais acessível estava quase aflorando, uma quase imperceptível negação à dramaturgia convencional que ainda se repete mais vezes durante a projeção.

Embora óbvia, a escolha de focar-se nos momentos de aula é acurada, inclusive quando o roteiro resolve “dançar” por reveladoras cenas de bastidores que alargam ainda mais as veias de significado da realidade que Cantet busca mimetizar – ao que dizer isso só se torna justiça quando a sutilíssima edição é citada como grande pró. E não apenas na perfeição da mimese o filme se comprova sublime: a motivação que leva a essa escolha estética é de tirar o chapéu.

A veracidade que o filme consegue imprimir em cada um de seus personagens é tamanha, e tão inegável, que fica claro que nenhum tipo de documentário conseguiria capturar tanto e tão sincero material humano. E passa longe de Cantet adotar aquela definição romântica de “humano”, a adjetivação que busca nessa palavra uma qualidade altruísta e bondosa. Aqui, “humanos” são todos, o que quer dizer que todos são arrogantes, estúpidos, violentos, auto-indulgentes, obtusos, injustos, limitados, confusos, e que agem quando deviam falar, falam quando deviam agir, e ainda assim erram grosseiramente tanto no falar quanto no agir, resultando num caos que deixaria Dante de cabelos em pé. O total sucesso do filme em sua proposta é confirmado quando todas as questões sociais, das étnicas às sexuais, se tornam “compreensíveis”, com tanta falta de entendimento entre aquelas pessoas – é possível enxergar as disparidades pessoais se amontoando através da História e chegando ao ponto atual de quase natural diferença entre grupos.

Ao vermos esses “estereótipos” (palavra pejorativa que não se encaixa num filme que já parte de personagens baixíssimos em conceito moral e tampouco faz sentido pelo formato narrativo) e conflitos apenas durante a classe, fica claro como as pessoas têm a capacidade de desestabilizar o que é criado para funcionar. E é triste constatar que as coisas funcionam, de fato, salvo o detalhe de que há gente nos dois lados do sistema. A relação aluno/professor também não pode ser vista com esperança alguma, por se tratar de um choque de vontades muito bem ilustrado, e tampouco se deve esperar sensatez dos diretores da escola. Muito menos pode o espectador afastar os paredões do abismo entre a escola pública da França e a brasileira, já que o filme deixa claro que sua instituição realmente é boa em teoria, e posta em frangalhos devido “apenas” a todos que usam seus corredores. O que, claro, só torna a ineficiência prática ainda mais desolador.

E mesmo que possua traços “humanos” (na concepção arrasadora do filme), François não deixa de ter qualidades inegáveis. E, mesmo assim, seus valores são constantemente postos em cheque sem piedade, como que para ressaltar que, talvez, os muros da escola sejam tão perfeitos que suprimem a necessidade de nossa espécie de ter numerosos defeitos. Logo, a prisão inferida no título não é o cárcere físico e psicológico daquelas pessoas imperfeitas, e sim a de um ideal perfeito que sufoca o que há de mais básico na existência do Animal Mais Inteligente do Mundo. O final tem uma dose relativa de romantismo, que não combina com o que foi mostrado, mas, além de François ter aplicado um golpe emocionalmente mais certeiro (distribuir os trabalhos), as cenas finais mostram o palco da caótica experiência e, apenas por sons, jogam ao terceiro plano a possível perspectiva de conciliação – que, claro, tem que se dar com a inescapável rivalidade de um esporte.
9,5

9

Percebi em Psicose boa parte dos vícios, das convenções e das "regras" que tudo quanto é tipo de filme de suspense segue fielmente até hoje. É por causa de Psicose que acham que sustos têm que ser acompanhados de uma trilha sonora repentina - bem que todas podiam ser obras-primas assim. É por causa de Psicose que há sempre uma exploração silenciosa, tensa em um cômodo ou lugar misterioso, assim como o susto falso que fatalmente vai ocorrer para assustar e baixar a guarda do espectador. É por causa de Psicose que cenas de violência são comumente montadas em sucessão rápida de planos claros e/ou desorientadores.

E é aí que entro no outro tema. O que eu vi nesse filme é incrível. Não tenho muito medo em dizer que é um dos trabalhos de montagem mais perfeitos que já vi. O suspense que Hitchcock cria só no ato de cortar, tudo que ele deixa implícito, explícito, claro, confuso, misterioso, só na edição, equivale a uma parte generosa do próprio ato de dirigir, tanto que isso adiciona ao tom e ao clima do filme. A cena do chuveiro não é precisa, é caótica, e mesmo assim, com breves lampejos da faca indo para baixo e para cima, do sangue escorrendo, da água entrando nos olhos de Leigh, do sangue saindo do corpo dela e pingando na banheira, das mãos se agitando, dá pra sentir exatamente o que a personagem derradeiramente sentiu, pra não dizer o que ela viu e ouviu em seus últimos momentos. E além da sensação de tensão e desespero, os cortes ainda servem para explorar essa reação (quando alternam-se planos do rosto de Miles subindo as escadas e da casa se aproximando), assim como para demonstrar pensamentos (Leigh desvia o olhar para a carta várias vezes e, ao vermos a carta, fica a bizarra noção de que ela está "olhando" de volta).
10,0

O estilo jornalístico é uma abordagem geralmente bem-utilizada no Cinema. Espera, eu falei estilo? Perdoem-me pela errata. Estou falando de Frost/Nixon, e estilo é um alvo que Ron Howard passa longe de acertar.

O já ganhador de um prêmio norteamericano de visão cinematográfica quase nula firma-se (pelo menos em minha visão, eu que vi só 4 filmes dele) como um anti-esteta, um autômato sem personalidade alguma que sabe pouco além tornar cenas melosas e piegas mais melosas e piegas e, no caso desse filme, pisa feio na bola por não fazer absolutamente nada atrás das câmeras. Ok, ele tenta exprimir algum tipo de idéia quando foca ruidosamente o rosto de Sheen durante o noticiário sobre o impeachment de Nixon. Sim, ele usa uma fotografia dessaturada e arranha uma edição dramática durante as "entrevistas". Mas é só isso, e raramente, o que ele faz: dar uma aula de como confundir estilo seco com falta de estilo. E venhamos e convenhamos: que ideiazinha mais patética essa de fazer um zoom-in no ator que bem na cena em que um desejo sobrenatural o insere no fatídico plot do filme.

Fora isso (uso de câmeras óbvio e, nos piores casos, imbecil), Howard apenas cria o que chamo de filmagem de edição. Com a câmera instável, um olho emocionado com o que está vendo, o "diretor" capta imagens de vários pontos de vista, apenas pela possibilidade de captá-las, e os editores Hill e Hanley adaptam aqueles pontos de vista num todo coerente, abrangente e ao mesmo tempo focado, num atencioso trabalho. E por mais que isso pareça (e, vá lá, seja) planejado, é triste quando um diretor tem como maior trunfo uma porção de cenas que serão costuradas coerentemente pelos montadores. E longe de ter a dinâmica e o vigor que um Greengrass usa em seu caos calculado, Ron escolhe nunca alternar planos numa mesma cena, como que para dar a impressão de que tudo está em constante movimento. Mas está tudo agonizando no chão, depois de a muralha das limitações do anti-esteta servir de obstáculo.

Felizmente, a ínfima participação de Howard em seu filme dá liberdade para o texto abrir as asas e atingir alturas lindas de se ver. O cadenciadíssimo e muito bem azeitado equilíbrio entre personagem e figura pública é sutilmente posto em jogo, com cenas de aprofundamento humano corretas em momento, em duração e em função – as cenas dos “bastidores” são o melhor exemplo disso, evitando com muita sobriedade uma exposição exagerada e dando voz para personagens cujas máscaras e armaduras estão postas quase que o filme todo. Nada é deixado de lado (no final, quando fica uma dúvida quanto a se Nixon poderia inspirar pena, o roteiro entra e argumenta com habilidade e elegância para mostrar que tipo de impacto o momento de fragilidade daquele grande homem causou), mas não há excesso de explicação tampouco. Por sinal, os diálogos são todos excepcionais, e as cenas da entrevista-mote ditam seu próprio ritmo, indo da prolixidade de Nixon às intensas discussões em que, sem a necessidade de vermos nada em volta, percebemos a coragem absurda do homem que está interpelando as falas de Nixon.

E, justiça seja feita, nada disso seria o que é não fosse pela vibrante atuação de Sheen. Se no mundo “real” ele acompanha a evolução de seu personagem sem errar um passo (sua inicial posição de homem-do-show-business, a lenta percepção de que sua atitude tinha de mudar, a resolução em que ele abraça uma qualidade inteiramente nova em sua vida – e, por que não?, a naturalidade com que volta aos maneirismos de antes), nas entrevistas com Nixon tudo sobe a outro nível, com as hesitações quase insuportáveis, mas inteiramente críveis dada a (não-explicitada) posição que ele costuma ter perante um convidado – e isso só torna as últimas cenas, em que ele já sabe o poder que pode ter, mais impressionantes.

E Langella, ao adotar uma postura absurdamente natural (aqui não falo só da postura corporal, e sim da maneira como ele se impõe, de forma inescapável, a todos à sua volta) e ao usar a boca e a voz de maneira a caracterizar Nixon sem esforço, se dá a deixa para explorar a fundo o homem que habita a figura. Ele busca, no passado político, na dureza dos erros cometidos e na força de ataque transformada em força de defesa, o combustível para um retrato de emoções monárquicas, sem sombra de dúvida, mas emoções de qualquer modo. Não é questão de ter pena daquela fera ferida, ou de sentir ódio daquele tirano arrependido: ele se tornou humano, e é graças à monstruosa inteligência emocional de Frank que isso se torna realidade em filme.

Tirando proveito, ainda, de um inspirado, politicamente abastecido Rockwell num papel que lhe dá momentos excelentes, de uma participação pequena, mas sóbria de Toby Jones e de uma figura protetora – no sentido menos sentimental possível – e altiva de Bacon, os trunfos do filme são inegáveis. Ainda contam pontos a excelente trilha sonora de Zimmer e um figurino apurado e elegante, e se a fotografia é simplesmente ruim, não é algo que incomode mais que a direção pedestre de Howard. E, no caso dessa inteligente obra, a interferência é relativamente pequena.
7,5

O ímpeto, após assistir algo tão seco quanto Não Matarás, é negar qualquer traço de humanidade no filme. Mas não seria coerente, e mais, não seria justo com a poderosa obra de Kielowski. Esse aparentemente simples estudo moral não se preocupa em criar personagens de fácil assimilação ou digestão, e tampouco em explorar as nuances de suas emoções. Elas são apresentadas de forma expositiva, sem rodeios ou introduções, como impulsos ou, simplesmente, choques – o exemplo óbvio e mais representativo é a cena em que Beatka entra no carro. O delineamento das personalidades também não se preocupa em sutileza, tornando tanto Jacek (Miroslaw Baka, excepcional) quanto o taxista pessoas detestáveis – embora a escolha, mesmo que consciente, de não tornar o segundo nem um pouco humano não me agrade muito.

Mas, mantendo a linha escolhida, o odioso taxista morre sem que se sinta pena dele – talvez agonia, pela brutalidade de seu longo assassinato, mas pena, não. E, tendo o filme o ponto de vista do inexperiente advogado criminal, Piotr (além do de Jacek), isso faz sentido. Apenas o jovem criminoso é visto com pena, por ser uma tragédia e um símbolo de derrota. Afinal, as intenções, quase “ingênuas”, do assassinato, unidas à figura nojenta da vítima, acabam por formar uma moral difícil, onde a punição é posta em cheque de forma cíclica, inexorável, e, por isso, ainda mais ambígua. As duas cenas mais longas são cenas de assassinato, cheias de paralelos, e por mais que o diretor tenha algo a dizer, é inegável que a reação é de posse do espectador.

E num filme que foca nas reações das pessoas a estímulos de outrem (o motorista irritado com a alegria de Piotr, o choque de Beatka ao entrar no carro) e de acontecimentos (o sentimentalismo súbito de Jacek, o plano final de Piotr, o transeunte de bicicleta, que abre outro canal de interpretação), a reação do espectador é o que torna a experiência do filme instantaneamente relevante, mais que suas convicções políticas e até mesmo seu formato ousado.
8,5

Vi ontem na facul um documentario chamado Faixa de Areia, que faz um retrato bem curioso da(s) sociedade (s)alternativa(s) que se forma(m) nas praias do Rio. As vezes as mensagens sao obvias demais, assim como algumas ideias sao exploradas ate soarem repetitivas, mas nao se pode negar a forca de boa parte dos depoimentos, da abrangencia que Lins e Silva e Kallman conseguem mostrar e da edicao bem bolada e eficiente.
8,0

Sorrisos de uma Noite de Amor, uma ótima comédia romântica, se parece mais com Ligações Perigosas do que com as leviandades comuns nos cinemas hoje em dia. O roteiro se balança num jogo de seduções que se inicia velado e até mesmo sutil, mas logo se desenrola em uma esfuziante orgia de intenções explícitas, com direito a diálogos afiados e divertidos.

Chega a ser impressionante o nível escandaloso dos flertes e insinuações, especialmente porque o roteiro vai lentamente revelando a ordem que rege aquela elite “depravada”. Longe de retratar o tédio das classes altas, como Antonioni, Bergman mostra os ricos como profissionais dedicados, e é exatamente nos hiatos do trabalho que as necessidades básicas surgem. Nessa lógica, os personagens são muitíssimo bem-escritos, de Henrik (saído de um conto de Poe e jogado numa obra de de Laclos) a Carl Magnus (talvez a mais hilária e surpreendente apresentação do filme), de Anne (cuja inocência e pureza acabam a levando ao ato mais chocante) a Desiree (a Dietrich de A Mundana com um generoso verniz de cinismo cênico), todos respiram individualmente e funcionam na narrativa, e a fazem funcionar.

Não que seja perfeita, já que a estrutura alternada, em que uma sub-trama é longamente focada por vez, torna o roteiro ocasionalmente enfadonho de se acompanhar – mais por algumas partes que pelo arranjo delas, diga-se. A poesia do título, típica de Bergman, está presente como sempre, e mesmo que não seja lá muito bem-vinda num filme como esse, não compromete por ser colocada no melhor momento possível, e o mesmo pode-se dizer do relativo moralismo do desfecho de Petra. O grande elenco ajuda a dar ainda mais firmeza, com Björnstrand achando o ponto exato no quesito cômico, Dahlbeck equilibrando seu jogo cênico com a dissimulação viperina e Jacobsson dando fragilidade sincera a Anne, que termina com uma moral consideravelmente complexa. Para finalizar, o excelente uso de música e som é apenas o bônus de um diretor que sabe comandar a cena e seus atores (reparar nos vários e complexos gestos dos personagens é certeza de apreciar a regência do mestre) de forma exemplar.
8,5

Em Dersu Uzala, Kurosawa deixa (mais uma vez) a marca indelével de seu olho estético, conseguindo que o filme cresça de forma acachapante com a qualidade visual. Não é a primeira vez nem a última, mas nunca é demais repetir aquela que é um dos grandes motivos pelos quais o japonês é um gênio.

Muitas das imagens capturadas são sublimes, mas isso seria subestimar o pensamento artístico do diretor. Não há beleza pela beleza aqui, ela sempre carrega um significado. Uma das primeiras cenas é uma montagem de imagens de uma floresta de cedros - oposição radical à introdução (de outro modo, totalmente descartável), que mostra o local sendo desflorestado. Mas o mestre consegue bem mais quando cria contradições na mesma imagem, como a arrepiante cena da nevasca. Além da tensão insuportável e de uma bela e comiserada trilha, a fotografia se encarrega de tornar as imagens embasbacantes, enquanto o que acontece aos personagens é potencialmente mortal. É a visão da Natureza como uma entidade de poder e beleza equiparáveis.

Nessa linha de pensamento, outra excelente cena mostra o mesmo com um sol quase vermelho que parece caçoar da frígida planície que os personagens atravessam. Para não dizer que tudo se "limita" a essa qualidade sublime e paisagista (e mesmo as que o fazem contém mensagens culturais profundas), posso citar exemplos mais sutis: a cena em que Dersu se encontra na casa do capitão Arseniev, com sua mala encostada a um canto; o enquadramento em que o capitão, seu filho, sua esposa e Dersu estão sentados fazendo o que suas culturas permitem; o arranjo dos soldados como alunos dos vividos protagonistas; e, ora, a cena em que os momentos de calmaria da relação entre Uzala e o Arseniev são mostradas através de fotografias, o que diz muito. Ou, talvez, uma das primeiras e mais marcantes vezes que a fotografia do filme ganha destaque: quando Dersu sofre chacota por ser um animal, a fogueira só divisa sua silhueta, ao que os homens em volta têm a luz direta em seus corpos.

Mais inteligente ainda, o figurino chama atenção nesse sentido: antes as vestes de Dersu diferem totalmente dos uniformes militares (a diferença de culturas), mas, na segunda jornada, em que o capitão confia plenamente no Goldi, um plano mostra como as roupas dos soldados acabam parecidas com os tons beges e amarfanhados do caçador. Kurosawa adiciona significados belíssimos com seu apuro visual, e embora o tema do choque entre civilizações seja bem defendido pelo roteiro (logo no começo, o capitão usa o mesmo método de Uzala ao reconhecer sinais para tirar uma conclusão), o que causa admiração é mesmo a complexidade que o diretor adiciona através de sua genialidade.
9,5

Ainda nas especificidades: se a edição de Psicose não foi indicada ao Oscar numa injustiça monstruosa, em Os Imperdoáveis isso não ocorreu. O trabalho foi indicado e premiado, e com muita razão. Embora a montagem seja econômica no geral - e talvez por isso -, uma cena em especial abusa de cortes, sem tentar mascarar isso. Quando Little Bill oferece a arma ao Inglês, a decupagem alterna cenas visualmente discrepantes para reforçar o corte, e, nesse processo, tornar o momento desconfortável e dar uma sensação de euforia, de que o diretor precisava cobrir muitos elementos e teve de se apressar ao retratar cada segundo de cena.

Do lado oposto, está o diálogo de Bill e Kid em que há uma pessoa vindo da cidade em direção a eles. A frieza de Bill é contrastada com a emotividade de Kid, especialmente porque o primeiro faz pouco caso do que o segundo fala, e se foca no elemento que se aproxima. E a montagem, aqui, é ao máximo econômica, mostrando três ou quatro vezes a mulher que chega, deixando o hiato de sua aproximação na cabeça do espectador, ao que a cena se quebra pela misè-en-scene primorosa. Kid está dialogando com Bill, mas a resposta é vazia, pois sua mente não está naquilo - sua mente está no que está se aproximando, algo que é mostrado mais pela ausência que pela presença. Se bem que: o elemento fatídico (dinheiro, consumação dos assassinatos) trazido pela mulher está prestes a romper mais uma vez com sua 'malvadeza', mas outro elemento fatídico (a informação sobre Ned) acaba por escrever indelevelmente que o passado clama por um futuro condizente, e que Bill iria voltar a ser o monstro de antes.

Não que a direção de derrubar da cadeira, a fotografia melancólica e o roteiro violento não tenham parte na qualidade dessas grandes cenas. Mas são momentos em que fica clara a excelência absoluta da edição.
10,0

Não dá pra ficar mais anos 80 que Flashdance. Os cabelos, as roupas, os temas, as imagens, os sons, as tendências, as gírias... tudo é marca de uma época que não volta pros nostálgicos, mas vive num entra-e-sai de moda para os que nasceram tarde demais para vivê-la. O que ocorre na película também é sintomático: o cinema feel-good estava em alta, os sonhos pareciam, todos, realizáveis, e tudo era mais pesado e violento que hoje em dia.

Como? Pois é. Mesmo no finalzinho da década, Duro de Matar provava que filmes de ação podiam muito bem brincar com palavrões fortes e sanguinolência sem cerimônias. O mesmo ocorria com o filme da dançarina, que não teve medo de entrar em lugares que nenhum filme comercial ousaria hoje em dia, e mostrando coisas que deixariam os produtores de cabelo em pé. A fêmea poderosa e irresoluta (Beals, boa) daria uma surra linda de se ver em qualquer protagonista feminista atual (não que isso a torne mais feminina, mas não importa), seu interesse amoroso (Nouri, fraco) faria qualquer carinha bonita de comédia romântica sair correndo e gritando e os números de dança fariam o Falcão entrar no cio.

O mais divertido é que tudo isso é envolto numa fotografia no mínimo pitoresca e em uma direção bem menos morna que o esperado - as câmeras são, no mínimo, interessantes, e há cortes divertidos, como o do hambúrguer. E mesmo que a protagonista e as canções ajudem a cativar, nada muda o fato de esse ser talvez o roteiro mais truncado dos últimos tempos, com acontecimentos que não se preocupam de maneira alguma em se conectar num todo. É como recomeçar a ver o filme a cada 5 minutos, e com bem menos informação que o necessário - não se preocupar nem em explicar como o final foi feliz, se ela apresentou um número de jazz para uma banca de balé, é um tanto irresponsável. Mas, mesmo assim, e, mesmo hoje, talvez pelo retrato afável da época, o filme ainda cativa.
7,0

Não tem como comentar A Montanha dos Sete Abutres sem falar de Jornalismo. Para começar, a intocável atualidade do filme (de 1951) tem tudo a ver com o retrato devastador que cria dos profissionais da notícia. A imagem que Wilder confecciona com Chuck Tatum consegue a façanha de ser tão impiedoso quanto o que ele lançara ano antes a Norma Desmond - e, eu diria, ainda mais cruel, uma vez que a ex-estrela tinha a ilusão que lhe impedia de ver a verdade e que permitia um tom mais cômico.

Não há concessões na trajetória do jornalista. Embora seja correto que o conflito de consciência está lá, com visíveis crises de ética (perfeitamente retratadas por Douglas) e um certo moralismo (independentemente da solução para o final aberto), a vida de Tatum é apenas um exemplo apoteótico de como a informação e os fatos correm risco mortal quando postos nas mãos de "homens-espetáculo" sagazes. A interferência é vista em uma quantidade generosa de detalhes, dando complexidade ao excelente roteiro.

A Sra. Minosa, o xerife, o vendedor de seguros e sua família, Smollett, Boot, todos são personagens que refletem ideais atropelados, códigos de moral descartados e disparidades ideológicas, tudo embasado de tal forma na ética que Wilder acaba por fugir (jornalisticamente, diga-se) de tomar um partido. O protagonista e os que ele influencia estão lá, e o simples mostrar, às vezes não sutilmente, mas sem nunca hesitar, como é a relação entre aqueles pensamentos conflitantes torna o filme violentamente profundo.

Violentamente pois, sem dúvida, assistir e ficar incólume é como engolir vinho bom e não saborear. Os questionamentos são mais atuais que nunca, e se direcionam para o espectador, pois ele também consome o produto jornalístico chamado Notícia, e, guardadas as proporções, pode muito bem se ver naquela turba que transformou a Montanha dos Sete Abutres num circo literal e metafórico. É como um pacto que emissor e receptor fazem: ambos travestem a indiferença perante as tragédias, fingem interesse mutuamente.

A quebra de Chuck com esse pacto se dá quando ele informa a multidão que Leo está morto. Ele o faz com rispidez, sem romantizar o homem como havia feito até então: ele dá a morte crua, quando poderia muito bem maquiar a verdade com uma idealização elegiática. Ele balança o sistema e tira o suporte do circo que construiu. Mas não tem como negar que o final, aberto, abre espaço para um inescapável pessimismo, pois não ficam dúvidas sobre a existência de milhares de Chucks no ramo, mesmo que nada seja declarado. E é possível que muitos sequer tenham os mesmos questionamentos internos, resultando num sistema abarrotado de formigas fiéis.

Apenas para ressaltar o brilhantismo de Wilder, a tomada final merece ser esmiuçada: as imagens de personagens, até então, haviam usado o plano americano com maior freqüência, e bem nos segundos finais, o diretor posiciona a câmera na linha dos pés, com Tatum quase fora do enquadramento, pois, quando ele desfalece, consegue-se uma imagem poderosa. O protagonista se torna uma notícia, e Billy não perde a chance de tirar proveito irônico da imagem do jornalista caído no chão. Os ecos de Crepúsculo dos Deuses são claros, mas não soam como repetição, pois é outro mundo que se desnuda no filme de 51.

E a discussão continua. A sociedade deve continuar seguindo o sentimentalismo preparado como uma torta pela mídia, ou deve ignorar por completo casos como o de Eloá e o de Isabella Nardoni? Há de se reagir às milhares de tragédias diárias, ou não reagir a nenhuma? Ou reagir apenas a algumas, como está nos planos do Jornal Nacional e da Folha de São Paulo? Será que foi criado um sistema que equilibra a frieza e a emoção do ser humano em fatias iguais?

Eu digo sim, e chamo isso de hipocrisia - talvez a mais popular das máscaras inventadas pela sociedade.
9,5