quarta-feira, 6 de maio de 2009

4

É com as imagens que Wong Kar-Wai busca contar Amor à flor da pele. Ele implode a continuidade convencional, dando um aspecto absurdamente episódico à narrativa, ao passo em que cria uma estética fluida e homogênea. O preciosismo é extremo, da direção de arte à fotografia, dos figurinos ao uso constante de slow-motion: o diretor estilhaça o roteiro para remendá-lo em imagens. Outros elementos também se fazem presentes para tal fim, como a bela trilha sonora, o som e as atuações do casal protagonista.

Enquanto a música de Shigeru Umebayashi e Mike Galasso acompanha rimas (ou melhor: repetições) visuais, o som cria uma interferência relativamente barulhenta do mundo externo, lembrando a presença deste na vida secreta da Sra. Chan e do Sr. Chow. Leung e Cheung, por sua vez, cumprem o desafio de explorar seus personagens em minúsculos fragmentos de cena. O jogo cênico dos "ensaios" demonstra muito bem a capacidade dos atores para juntar os hiatos do roteiro e criar toda um histórico sentimental. Os diálogos tentam compensar essas lacunas, pois são, em sua maioria, expositivos demais (não tanto em relação aos eventos, e sim à declaração das emoções), e isso fere a proposta minimalista.

Por outro lado, o inteligente ideal estético cumpre todos os papéis requeridos: conecta momentos deslocados, cria um ambiente onírico, reflete uma relação em que tudo tem de ser perfeito para funcionar, torna corriqueira e repetitiva essa perfeição e, através de movimentos de câmera quase parnasianos, ressalta a sutil evolução do relacionamento. Isso vai muito além da simples estetização do romance, e cristaliza a relevância artística da obra.
9,0

Desde a primeira cena, o diretor Andrzej Wajda propõe Katyń como um estudo sobre as transfigurações dramáticas e ideológicas de sua história sobre a Segunda Guerra Mundial. A sequência de abertura mostra uma turba de poloneses atravessando uma ponte para escapar dos nazistas, que invadiram seu país. Do outro lado, no entanto, vem outra multidão, que anuncia estar fugindo da recém-iniciada invasão por parte dos soviéticos. E, no meio do movimento, a informação é entoada várias vezes, e ninguém parece ouvir, continuando a marcha desesperada para fora. É assim, sem caos barulhento e desnecessário, que se constrói a primeira transformação: aquela gente vai sendo encurralada por um acordo que foi feito sem o consentimento público. Uma fuga se torna duas, e logo, todos estão encurralados, presos numa espiral de repressão. A união dos inimigos é feita sem transição, e isso marca boa parte dos acontecimentos políticos retratados.

O mote, a passagem de culpa da Rússia para a Alemanha, é feita da mesma forma. Do dia para a noite o massacre de Katyń foi perpetrado pelos alemães, e não pelos russos, simplesmente porque eles findaram o acordo com os nazistas, tomaram a Polônia e a controlam com mão de ferro. A política é vista como um sistema que opera secretamente, sem permissão ou aviso, deixando claras apenas as proibições e obrigações do povo. Isso leva a um esforço triste, mas pungente: a necessidade de revelar a verdade. Fatos falsos são instaurados de sopetão, mas a realidade tem de ser conquistada, sangrada pelos (e dos) cidadãos preocupados com ela. A cena final, embora óbvia ao extremo, é a apoteose inversa dessa busca pelos fatos puros. Vê-se, pela primeira vez, a supressão gradual, grão de terra por grão de terra, de um acontecimento depois de ser mostrado. No quesito narrativo, essa inversão da cronologia dos eventos é forte, mesmo que a metáfora de “enterrar a verdade” seja preguiçosa.

Metáforas, por sinal, podem ser confundidas com os processos transformativos que Wajda adota ao longo de seu filme. Pode-se argumentar que o trem que levará os poloneses a sua morte é simplesmente tomado por uma besta infernal, com seus guinchos, baforadas e opulência. No entanto, há um trajeto visual e sonoro: primeiro os trilhos e o som deixam claro que é uma locomotiva que se aproxima, e só quando ela chega, o diretor a faz virar um animal carnívoro e sanguinário. A câmera não busca a maquinaria e os pistões, e sim a indecisa forma, o deslocamento ensurdecedor e a fumaça que aquela criatura expira. O veículo é tornado, a olhos vistos, em algo diferente, e o foco é na metamorfose, não em sua fase final. É escancarando tal construção que o filme se torna imparcial, por não escolher nenhum dos lados do processo.

E essa imparcialidade é crucial para uma história que é fundada na ideia de luta pela verdade. Logo, a mãe do protagonista Andrzej (Artur Żmijewski), interpretada por uma magistral Maja Komorowska, reforça sua figura materna por se preocupar menos com a verdade e com a censura do governo, e mais com o conforto de imaginar seu filho e seu marido em segurança. Ela escolhe não calcular possibilidades “realistas”, que podem nunca chegar à realidade, e se agarrar a uma mentira certa. É a única maneira que encontra de proteger o que ama, em seu coração. Suas expressões de dor e desespero são constantes transições do sofrimento à resignação, em que ela aceita que se fazer cega e ignorante tem as suas consequências inescapáveis.

Ainda nessa linha, tal submissão se faz presente no roteiro na forma do romance entre Ewa e Tadeusz, na forma como é desenvolvido. Se o clima de flerte improvável soa “Hollywoodiano” ao extremo, é por bons motivos: seu desfecho causa a ruptura mais violenta do filme, fazendo um encontro fantasioso virar apenas mais um número na contagem de corpos. Isso, aliás, leva a dois aspectos distintos e notáveis. O primeiro consiste no modo como certos personagens são tratados: eles são simplesmente abandonados ao longo da narrativa, após cumprida sua função. Embora cenas como a última de Jerzy (Andrzej Chyra) ilustrem essa característica com solidez, não se pode deixar de lamentar essa transição, do algo importante para a ausência, para o nada. Ela acaba por enfraquecer uma obra calcada exatamente nas transformações que todas as coisas sofrem – e esse tipo de sacrifício que os roteiristas adotam soa piegas demais. O segundo aspecto é o que espanta toda essa convenção dramática, e se resume na encenação do massacre. As execuções mecânicas transfiguram toda a abordagem – consideravelmente melodramática, diga-se – em atos de frieza completa, postos em prática por autômatos que têm um esquema industrial de assassinato e manuseio de corpos. Esta é a mais grandiloquente metamorfose de “Katyń”, e dialoga com tudo que foi mostrado antes.

Se, por um lado, o melodrama e o formato convencional não são desculpados simplesmente por se prestarem a algo maior, por outro, mostram como Wajda estava ciente de tais elementos, e como os usou com propriedade. No final, o fato de ele os usar, de qualquer maneira, se torna muito menos relevante se comparado aos fins almejados.
8,0


Sindicato de Ladrões

Obra-prima. Que lindo ver um filme que não usa seus elementos, e sim os constrói cuidadosamente, desde a jaqueta como objeto narrativo até o bom e velho romance "proibido", passando pela metáfora dos pombos e pela imagem de mártir. Como são singelos os gestos e detalhes do roteiro! Que sutileza em retratar o sentimento cooletivo da época! Que som! Que fotografia! Que edição! Que protagonista complexo! Que Brando gigante! Mas, ora, quem não é gigante? J. Cobb, Malden, Marie Saint, Steiger, até mesmo Hamilton o são. E, usando o termo pela primeira vez em muito tempo, e merecidamente: é um tour-de-force o que Leonard Bernstein faz nesse filme. Poucas vezes ouvi uma trilha tão monstruosa, tão ciente de sua capacidade.
10,0

Fellini pode muito bem ser um dos cineastas mais sociais que o Cinema já produziu. Ele compreende muito bem as leis, os pressupostos, o funcionamento e as engrenagens da sociedade humana, e, utilizando-se da omissão, denuncia uma triste irredutibilidade quanto a tais preceitos. Em A Trapaça, isso é explorado diretamente, sem sutilezas, uma escolha bem consciente e característica.

A trajetória de Augusto (Broderick Crawford) segue uma linha de redenção de personagem, desafiando o meio em que vive. A humanidade que aflora no trapaceiro tem a ver com seu contato com Picasso (Richard Basehart), um jovem vigarista que ainda não mergulhou nesse mundo torpe. Se o filme foca nele em alguns momentos, é por causa de sua importância como peça comparativa.

Sob vários aspectos (o familiar, o profissional, o existencial, o humano), os homens têm algum tipo de relação, seja de similitude, seja de diferença. Enquanto o mais novo dá sinais de não se adequar a tal tipo de vida, o mais velho já respira essa profissão escusa, e se adaptou quase que perfeitamente à moral, aos costumes e às festas de enganadores profissionais. No entanto, como outras figuras do meio acabam por mostrar, essa vivência é insuficiente, repleta de vazios mesmo no quesito financeiro. Até mesmo o status acaba por incomodar Augusto, que ainda quer mais, quer se igualar aos tantos outros que se encontram em esfuziante riqueza e paz. É o vácuo do dinheiro que mexe essas sensações, e é a própria tendência à bondade que faz do protagonista um homem pouco propenso a alcançar o sucesso máximo como trapaceiro.

Apesar de ser parte da proposta, isso é indicado de forma exagerada pelo arco dramático de Picasso. Os paralelos que o roteiro traça são muitas vezes redundantes, e funcionariam melhor se afastados um pouco mais ou se fossem menos “redondos” e fáceis. Mesmo assim, o fato de o jovem sumir em dada parte da história é uma bela escolha, pois fecha algumas definições sociais e expande outras. A ideia de que uma pessoa não é capaz de mudar de vida vai ganhando força com os insucessos de Augusto, e ganha uma apoteose com a insuportável cena da ladeira de cascalhos.

O filme dialoga com o conceito de nível econômico. Os camponeses, em sua simplicidade, vêm a possibilidade de se tornarem ricos, mas isso é uma ilusão. A realidade (a burocracia, as regras e as normas) é clara, e não deixa se confirmar essa possibilidade. Semelhante é a hierarquia criada para os criminosos, em que tipos como o grã-fino e o arruaceiro desfilam. Fica a impressão de que a personalidade de cada um influi na carreira, e altruísmo é a única constante nos que abandonam tais costumes.

Partindo daí, fica implícita a noção de determinismo, a de que nem mesmo o arrependimento e a humanidade redimem uma vida que a sociedade reprova. E essa incapacidade de encontrar seu lugar, preocupação que lentamente se insinua em Augusto, é passada com melancolia acachapante por Crawford, que acerta os momentos de internalizar e externar os sentimentos. Fellini também sabe como tudo funciona, e prefere sair do suspense de crime para cair no drama puro. E, mesmo que a tragédia seja sobressaltada pelo roteiro, a direção do italiano só faz retratar as bases (muito reais) da história. Essa realidade já é trágica o bastante.
8,5

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